A arte e sua função em uma sociedade dividida em classes sociais
Jóe José Dias
Levantar o tema da arte na sociedade de classes é um começo. Há uma antropologia das origens necessária. Estudar as sociedades tribais e comunitárias. Analisar as forças produtivas, a divisão do trabalho, o intercâmbio comercial, a transição para o domínio patriarcal, as origens da propriedade privada, das classes sociais e do Estado. O começo da sociedade de classes coincide com a transformação da aldeia tribal em cidade-Estado. (ENGELS, 2010)
Nos primórdios da humanidade a arte capta e expressa um momento primário de alienação oriundo de um sentimento de unidade entre o homem e a natureza. Essa relação visa a preencher a correspondência necessária que o homem tem com o cosmos e seu ambiente social com todas as formas e estruturas ainda embrionárias. Ou seja, a arte, neste seu princípio, apanha uma unidade social primeira, quase ulterina. Ela expressa essa relação intrínseca que o ser humano mantem com a natureza e com o seu ethos.
Porém, a cisão ocorre à medida em que o homem se separa da natureza, à medida em que vai se tornando menos seu refém. Aquela antiga unidade tribal é quebrada no instante em que se estabelecem a divisão social do trabalho e a propriedade privada, rompendo com aquele antigo equilíbrio social entre o mundo, a natureza e o homem. A hora da histeria, dos transes e da loucura chega. O cortejo dos humilhados e ofendidos aumenta.
Estamos agora em uma sociedade divida em classes. O antigo "comunismo primitivo", como denominaram o período precedente Engels e Marx fora superado por uma forma social mais complexa. Aquela poderosa voz coletiva que é a arte torna-se agora um instrumento privado a serviço dos privilegiados desta sociedade. E nem poderia ser diferente
Os antigos sacerdotes, aqueles que originalmente eram retirados diretamente da produção para serviços espirituais comunitários, adquirem um papel ainda mais central nessa sociedade, bem como as castas sociais diretamente vinculadas a eles. Surgem então as princesas, os príncipes, reis e rainhas e as famílias aristocráticas, que passam a se apropriar de um bocado bastante generoso de todo o excedente produtivo gerado a partir de novas técnicas produtivas cada vez mais sofisticadas. A glorificação destas personalidades e a nascente ordem social estabelecida adquirem status universal.
Dos escombros da antiga comunidade fragmentada e/ou destruída encontram refúgio as vozes suprimidas em sociedades e cultos secretos. A fragmentação social provocada por essa ruptura gerida a partir do advento da propriedade privada e o inevitável horror estrutural surgido a partir da dominação de classes, convivem lado a lado com o sonho impossível de um retorno ao passado, bem como com o advento de uma sociedade preciosa escondida em tempos futuros. A arte é gerida no fogo destas contradições e traços apolíneos e dionisíacos forjam-na em uma unidade contraditória.
A configuração histórica da sociedade de classes incide sobre o coletivo e a divisão do trabalho. A divisão do trabalho e a manufatura é um par em consolidação no capitalismo entre os séculos XVI e XVIII. (MARX, 2013, p. 411). Assim, a arte articula-se à dupla origem da manufatura: no trabalhador parcial e em sua ferramenta, apresentando as duas formas fundamentais - manufaturas heterogêna e orgânica. À divisão do trabalho na manufatura corresponde uma divisão do trabalho – e da arte também – na sociedade. O caráter capitalista da sociedade de classes começa a se consolidar.
Nesta nascente sociedade dividida em classes os papéis são divididos. Se no início a arte se confundia com os cultos sacerdotais, ritualísticos, servindo não somente como forma de expressão, mas também agindo como um elo de conexão entre o homem e o cosmos, surge agora um novo sujeito social, o artista, completamente distinto do sacerdote, do médico, do cientista e do filósofo.
O artista, no entanto, continua a ser uma voz da sociedade. E, se aquele vínculo com o culto ainda se mantém, começa agora a ser rompido. Em suma, pela capacidade intrínseca à arte (e ao seu progenitor, o artista) de fazer-se o eco e o reflexo da experiência comum, bem como dos grandes eventos e ideias de um povo e de uma época, da classe social ao qual representa e do seu tempo, o artista exerce ainda uma função bastante relevante na sociedade, embora diferenciada das de outros tempos.
Na palavras de Fischer:
Cabia-lhe elevar o sentido de autoproteção do povo da sua cidade, da sua classe, da sua nação; cabia-lhe libertar da insegurança de vida e das angústias de uma individualidade ambígua e fragmentada os homens que tinham emergido da sólida comunidade primitiva para o mundo da divisão do trabalho e dos conflitos de classe; cabia-lhe conduzir a vida individual de volta à existência coletiva, unir o pessoal ao universal; cabia-lhe restaurar a unidade humana perdida. (FISCHER, sd, p.52)
Eis a função do artista (e obviamente a da arte) nestes tempos: amenizar os efeitos desta alienação que o homem tem da natureza e de si mesmo produzida pela elevação a formas de maior complexidade e produtividade social. Ao crescimento cada vez maior da riqueza da sociedade, associou-se - graças à divisão do mundo em classes sociais e do surgimento da propriedade privada - o empobrecimento do homem; as relações humanas, antes indissolúveis, entraram em dissolução.
Obviamente que esta ruptura gerou um trauma: da antiga coletividade produtiva a esta individualização das relações provocadas pela espoliação das riquezas produzidas, gerou-se uma nostalgia, uma espécie de tragédia cerceada pela utopia até certo ponto reacionária aos tempos anteriores e felizes. Ou então na utopia de tempos novos onde a felicidade pudesse se restabelecer, em negação às relações humanas desumanizantes e desumanizadas do presente.
Da gênese das classes sociais, das aristocracias das primeiras antigas cidades-estado, ao mundo da mercadoria, um vasto trajeto é percorrido pelo homem. Durante este percurso, a arte, a alienação e a individualidade adquirem características em desdobramentos e consolidação na sociedade de classes.
O comércio e as relações calcadas na troca de mercadorias desumanizaram o mundo feudal, fazendo com que as relações humanas entrassem em desagregação. Essa alteração da estrutura social provocou a ruptura quase definitiva do homo sapiens com o meio que o cerca. E nas raízes da subjetivação e da literatura, do mito, aquele antigo e distante reflexo de uma coletividade na qual o indivíduo não passava de uma partícula anônima, tornou-se gradualmente em uma ficção formal da experiência individual.
As relações entre o individualismo e o coletivo entram em novos momentos. O papel da arte se refaz: “A arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total” (FISCHER, sd, p 57). Permite ao ser humano ir do em si ao para si. A arte estabelece, assim, capacidades novas em confirmação da humanidade dos seres. Mais que isso, na verdade: capacita não somente o homem a compreender a realidade, ajudando a suportá-la, mas gabarita-o a transformá-la, na medida em que o estimula a torná-la (a sociedade) mais hospitaleira para a humanidade. A arte é social, é sociedade: interseccionam-se os dois termos e os dois conceitos.
Daí o "estigma" que determinados grupos sociais têm da arte. Mesmo na contemporaineidade, onde tornou-se mera mercadoria utilizada inclusive como forma de se lavar dinheiro, pelo seu valor subjetivo, a arte adquire contornos revolucionários pelo seu caráter social e de questionamento a determinadas verdades consagradas em outras formas de expressão, por exemplo. Mesmo que de maneira temporária, elevando o homem para longe desse patamar terreno da vida prosaica. Todavia, o que seria da arte sem o artista? Ela precisa dele para se fazer exprimir, tanto quanto ou até mais que a sociedade. Já o artista consciente de seu ofício necessita da sociedade, na medida em que, sem ela, não adquire uma consciência social capaz de convertê-la em arte.
Dessa forma, o papel do artista submerge ao primeiro plano desta dialética narrativa (artista-arte-sociedade-artista-obra). Vem ao plano da consciência social e artística. Entretanto, muitas vezes esta relação é mediada, fazendo com que os períodos da história da arte e as classes sociais ganham concretude. Nas palavras de Fischer: “Tem sido quase sempre uma característica dos grandes períodos da arte o de que as ideias da classe dominante ou as ideias de uma classe revolucionária em ascensão coincidam com o desenvolvimento das forças produtivas e com as necessidades gerais da sociedade” (FISCHER, sd, p 58). Equilibram-se os interesses de uma classe particular com os demais interesses na sociedade.
O antagonismo inconsiliável entre as classes sociais, entretanto, desintegra esta unidade, fazendo explodir um conflito de nova magnitude, na medida em que as contradições sociais se tornam mais agudas e visíveis. Esta veia exposta por este nova estágio social exige um desfecho transformador, não somente social, mas também da arte. Ela então transforma-se, articula-se, reflexiva e ativamente, às formas sociais vigentes. E ao menos que queira ser infiel à sua função social, cabe a ela mostrar o mundo de uma maneira transgressora, descarnando-lhe a dura realidade e mostrando-lhe com contornos vivos, de uma forma dialética, capaz de ser mudado. Mais que isso: cabe à arte ajudar a mudá-lo. Deixemos que siga nesse rumo!
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REFERÊNCIAS
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 2. ed São Paulo: Expressão Popular, 2010.
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Tradução Leandro Konder. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
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