Eleições, individualismo e classes sociais

Por: Wagner Miquéias F. Damasceno

A eleição burguesa é um terreno desfavorável para os trabalhadores, e é assim, especialmente, por quatro motivos: 1) por tentar dar uma saída política que não ponha em questão a integralidade do capitalismo – em nosso caso, sempre respeitando os marcos do regime democrático burguês; 2) por incitar sempre uma ideologia de cunho individualista; 3) pela ideia de igualdade de cada voto e 4) pelo financiamento privado das candidaturas burguesas. Duas falas ajudam a ilustrar o primeiro ponto. A primeira delas foi proferida por Dilma Roussef, logo após a vitória eleitoral no segundo turno deste ano: “Minhas amigas e meus amigos, toda eleição tem que ser vista como uma forma pacífica e segura de mudança de um país. Toda eleição é uma forma de mudança, principalmente para nós que vivemos numa das maiores democracias do mundo” . A segunda fala também é recente e vem de um analista do El País TV sobre a conjuntura política espanhola e o papel do Podemos, partido que quer ser o porta voz dos indignados que ocuparam a praça Puerta del Sol em Madrid, na Espanha, em 2011: “Se o espetacular crescimento do Podemos responde à magnitude da ira cidadã, imaginem essa ira cidadã sem o Podemos? Imaginem essa ira descontrolada, solta, nas ruas? Os que criticam muito o Podemos deveriam começar por reconhecer o valor que tem a contribuição do Podemos à condução de toda essa ira dentro das margens da democracia” .

Após junho de 2013 registrar as maiores manifestações populares da história brasileira, foi prudente da parte do PT qualificar as eleições como a forma segura e democrática de se fazer mudanças. Vale lembrar que o próprio Tribunal Superior Eleitoral lançou, ainda no início de 2014, uma campanha denominada “Vem pra urna”; nas palavras do então presidente do TSE e Ministro do Superior Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello: “A época não enseja o minimalismo judicial, mas a atuação da justiça eleitoral, e também caminharemos para uma propaganda institucional cujo mote será: 'Não vem pra rua, vem pra urna!' .

A segunda fala é uma sóbria análise feita por um destacado órgão da mídia burguesa espanhola, El País, e expõe as “virtudes” do Podemos. A mensagem é cristalina: imaginem essa ira popular sem um partido capaz de conduzi-la para dentro dos marcos da democracia?

As duas falas buscam canalizar os anseios populares para dentro da democracia burguesa, tentando retirar as massas da principal arena política, as ruas. De um lado há a candidata, reeleita, do PT, representando um governo da burguesia de caráter frente populista. Do outro, há um jovem partido de viés reformista que não assume em seu programa o firme combate ao capitalismo, mas apenas a algumas de suas consequências . Ambos representam instrumentos que a burguesia utiliza em diferentes situações em que é preciso ceder alguns anéis, “para não perder os dedos”.

O outro aspecto das eleições diz respeito à ideologia burguesa de cunho individualista que nos instrui a ver em cada candidatura um projeto individual, e não um projeto de classe ou frações de classe. Assim, no geral, vemos Marina Silva e não a burguesia ruralista e financeira; vemos Aécio e Dilma, e não empreiteiros, ruralistas e banqueiros. O mesmo acontece com os candidatos da esquerda socialista, afinal, não são os metalúrgicos, peões e professores, mas o Zé Maria que se apresenta. No entanto, diferentemente das candidaturas da burguesia que se beneficiam ocultando seu conteúdo de classe, as candidaturas da esquerda socialista são prejudicadas por terem que reverter a lógica eleitoral e revelar seu conteúdo de classe. Em outras palavras, trazem consigo uma ideologia cujo conteúdo coletivo é enquadrado em formas individualistas.

Em decorrência, torna-se quase inescapável que a empatia com este ou aquele candidato oriente a escolha do eleitor. Nesse sentido, embora Marina “andasse com más companhias”,  acreditou-se que “se ela fosse firme e continuasse sendo quem era, faria um bom governo”. A pressão do voto útil também expressou essa “metodologia individualista” ao fazer com que muitos acabassem decidindo por aquela que lutava durante a juventude e não por aquele que sempre fora um bon vivant.

E nisso há, também, uma lógica formal rasteira: A é igual a A, ou seja, assim como o PT deve ser admitido como o mesmo (dos anos de 1980 a 2014), Dilma também deveria ser vista como a mesma (do Val-Palmares à cabeça da Frente Popular).

Como observara Trotsky, “o axioma A é igual a A aparece por um lado como o ponto de partida de todo o nosso conhecimento é, por outro, como o ponto de partida de todos os seus erros”. Afinal, a lei da identidade tem duas faces, ou seja, é verdadeira e falsa (NOVACK, 2005).

A lógica formal impede de vermos a contradição nascer no seio de algo. Nas palavras de Novack, a lógica formal “a toda pergunta responde com um sim categórico ou um não incondicional. Entre a verdade e a mentira não há pontos intermediários, não há transições aos escalões que as conectem” (2005, p. 43). Em nosso caso, a lógica formal impede que compreendamos que o maior partido de esquerda brasileiro tenha se degenerado e tornado um partido da burguesia. Essa lógica também impede que compreendamos a passagem da jovem guerrilheira, adepta de ações isoladas da classe, à presidente de um partido da burguesia, o PT.

Na política, esse método orientado por uma ideologia individualista e anti-dialético gera problemas. Afinal, embora o reacionário Jair Bolsonaro apoiasse o PSDB, o PRB, seu partido, era aliado da Dilma do PT. E, embora, Aécio do PSDB fosse apoiado pelo homofóbico Marco Feliciano, Dilma do PT, por sua vez, era apoiada pelo PRB do Bispo Crivella, sobrinho do Bispo Edir Macedo. Aliás, no quis diz respeito à bancada religiosa, é importante lembrar que Dilma Roussef, em julho deste ano, figurou por cerca de duas horas na inauguração do Templo de Salomão da Igreja Universal, em São Paulo, junto com outras autoridades, numa demonstração de prestígio e poder desse setor . O que nos leva a ajuizar que a “onda conservadora” não é uma variável independente do PT.

O terceiro ponto diz respeito à ideia de igualdade propalada nas democracias burguesas. Nas sociedades capitalistas a igualdade é sempre abstrata, isto é, não é real. A noção de igualdade entre todos os indivíduos é um ardil ideológico que tenta mascarar a desigualdade concreta entre as classes sociais e os indivíduos que as compõem. Afinal, que tipo de igualdade poderia advir de uma sociedade dividida em classes sociais?!

À guisa de exemplo, no primeiro semestre de 2014, o TSE produziu uma odiosa campanha  que foi veiculada nas rádios brasileiras com o fito de incentivar sertanejos e ribeirinhos a participarem das eleições, afirmando que o voto deles possuía o mesmo peso que o do Zezé di Camargo, agro-empresário , cuja fortuna estimada é da ordem de centenas de milhões de reais.

É evidente que cada voto (unidade) possui, formalmente, o mesmo valor contábil e isso, a princípio, colocaria os trabalhadores em vantagem, já que são em maior número do que os burgueses. Entretanto, a sociedade não é uma simples união de indivíduos, mas é composta por classes sociais que, por sua vez, ocupam distintos papéis na produção.

A ideologia de cunho individualista nos orienta a desconsiderar as relações sociais e os compromissos que os candidatos contraem com empresários, banqueiros e ruralistas, fazendo com que impere uma persistente ideia de que são apenas pessoas competindo por um cargo político. Tomados individualmente, os burgueses são numericamente inferiores aos trabalhadores, entretanto, a burguesia constitui-se numa poderosa classe que é capaz de dar existência e abrangência a seus candidatos, inundando as cidades com materiais de seus candidatos, pondo-os nos programas de rádio e tv pelo país e pagando centenas – às vezes milhares – de cabos eleitorais. 

Um agro-empresário como Zezé di Camargo possui recursos financeiros para financiar candidatos que defendam um programa político que assegure seus interesses, suas propriedades e seus investimentos, que, por sua vez, se chocam com as necessidades e interesses de sertanejos e ribeirinhos, por terra, trabalho, direitos sociais e preservação do meio ambiente.

O financiamento privado nas campanhas políticas assegura que a oferta de candidatos da burguesia seja ampla e forte o suficiente para suplantar qualquer candidatura da classe trabalhadora. Seus vultuosos recursos e influência social (através de seus postos de comando, seus aparelhos ideológicos etc.) proporcionam uma espécie de compra de votos no atacado, afinal, uma classe numericamente pequena não pode depender de votos individuais, por isso, tem que ir para o atacado. Por mais que a compra de voto no varejo (aqueles crimes de compra de voto por cinquenta reais, ou por alguma outra coisa de pouca monta) seja proibida, o que decide as eleições, o que garante milhares – e até milhões de votos – é legalizado, na forma do financiamento das campanhas pelas empresas.

Se as eleições fossem um campeonato de futebol, os patrocinadores que estampariam os uniformes do PSDB e do PT seriam os mesmos: banqueiros, empreiteiros, industriais e latifundiários! Isso fez com que a burguesia tivesse vencido as eleições, de fato, com um turno de antecipação, pois, embora PSDB e PT se digladiassem na finalíssima do 2º turno, os dois partidos já estavam em seus “bolsos” .

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Referências

NOVACK, George. Introdução à lógica marxista. São Paulo: Sundermann, 2005.

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