Por que a esquerda está dividida?

Valério Arcary

Hoje vou escrever umas linhas sobre porque a esquerda está dividida, assunto que interessa a muitos de nós. Há muitas razões.

Uma delas é que há diferenças de estratégia. Estratégia é um assunto muito sério. Estratégia política é o horizonte político que queremos. As táticas devem estar subordinadas à estratégia. E tem mais: estratégia não é algo que se muda todos os dias. Pode mudar, claro, mas somente diante de grandes mudanças da situação.

Então, é muito importante saber quais são as diferenças de estratégia que dividem a esquerda brasileira.

Ensina a sabedoria popular: "Cuidado com o que desejas... porque você pode conseguir". Desde 2013, quando pela primeira vez em dez anos se abriu uma crise política séria, a maioria da esquerda brasileira afirma que não restaria aos socialistas alternativa melhor, senão a proposta de Assembleia Constituinte Exclusiva para uma Reforma Política.

Essa proposta foi abraçada, em primeiro lugar, pela própria Dilma Rousseff.

Depois passou a ser esgrimida com paixão por várias correntes da esquerda do PT, e até por setores moderados, além do PCdoB. Foi abraçada, também, pelo MST, e pelo Levante Popular da Juventude.

Setores do PSOL uniram-se à campanha. Até o MRT, que surgiu da LER, defende a proposta de uma Assembleia Constituinte, embora sem a qualificação de exclusiva, uma versão que não melhora a proposta, ao contrário. Ou seja, a imensa maioria da esquerda brasileira, dos mais moderados aos mais radicais.

Por que a estratégia de democratizar a democracia está errada? Constituinte para uma reforma política é isso, e somente isso: a reforma deste regime democrático de presidencialismo de coalizão por outro menos antidemocrático. Portanto, democratizar o regime democrático.

Os defensores desta estratégia esgrimem três argumentos principais.

Em primeiro lugar, ela corresponderia à atual relação social e política de forças, já que não se abriu ainda no Brasil uma situação revolucionária.

Seria necessária, nessas circunstâncias, uma palavra de ordem plausível, viável, compreensível, ou seja, democrática radical. Em resumo: uma mediação.

É verdade que não se abriu uma situação revolucionária no Brasil, mas não será a campanha por uma Constituinte exclusiva que irá encurtar o caminho.

Mediações são necessárias na luta política. Mas mediações devem ser pontes, ou seja, reivindicações transitórias que unam as lutas de hoje, com a perspectiva estratégica.

Não servem mediações que nos desviam do que queremos. A proposta de Constituinte é deseducativa e aventureira, porque transfere para o futuro Congresso poderes para revisar a Constituição em vigor por maioria simples.

Muito bem: quais são as garantias de que a composição desta Constituinte não seria igual ou ainda pior que o atual Congresso? Por quê deveríamos diminuir o risco de uma revisão constitucional reacionária? Esta não tem sido a orientação estratégica fundamental da burguesia nos últimos quinze anos, inconformada com os poucos direitos impostos pela pressão de massas nos anos oitenta? Não seria perigoso facilitar essa revisão?

Não é verdade que os socialistas têm que levantar sempre uma palavra de ordem de poder positiva em seu programa de agitação política, isto é, poucas ideias para muitos - que corresponda à consciência média dos trabalhadores.

Na verdade, as palavras de ordem sobre a questão do poder são, invariavelmente, negativas, ou seja, variações de Nenhuma ilusão, Nenhuma confiança, Basta, Chega, Abaixo e Fora, seja uma parte do governo burguês de plantão, ou todo o governo.

A alternativa de poder pela positiva, quando em situações não revolucionárias, é sempre propagandística, isto é, muitas ideias para poucos - ou seja, uma explicação longa da necessidade dos trabalhadores construírem através de seus instrumentos e organismos de luta, uma saída anticapitalista. Por isso defendemos um Governo socialista dos trabalhadores, e confessamos que é ultra-propagandística. Só alguém que chegou ontem de Marte ignora que não há hoje no Brasil organismos dos trabalhadores que possam concretizar a resposta à pergunta: quem deve governar?

Isso é assim porque os instrumentos de luta que vieram dos anos oitenta, CUT e UNE, foram destruídos pelo PT e pelo PCdoB, que os amordaçaram, burocratizaram. E as novas organizações como instrumentos de luta pela frente única que surgiram nos últimos anos são minoritárias.

Não há mistério algum: só em situações revolucionárias é que as palavras de ordem de poder revolucionárias podem ser abraçadas pelas massas. Aliás, esta é uma das características chaves de uma situação revolucionária.

O segundo argumento apresentado para justificar a estratégia democratista tem sido a defesa incondicional das bandeiras democráticas como bandeiras que adquirem, ou podem adquirir, um caráter transicional. O equívoco desta formulação é o incondicional.

Podem ou não. Depende. Muitas vezes, não. Não há "abre-te sésamo" em política marxista. Seria muito mais simples se existissem fórmulas mágicas e universais, mas não há.

A luta pela revolução não vem com um manual de uso, com tudo previsto e explicado. O papel de todas as palavras de ordem, à exceção das diretamente anticapitalistas como expropriação, é condicionado pelas circunstâncias concretas. A burguesia prevê, manipula, age, se antecipa, elabora plano A e plano B.

A tradição marxista-revolucionária sempre defendeu a atualidade das reivindicações democráticas - em especial nos países periféricos onde a revolução por fazer será a simultaneidade de várias revoluções - agrária, anti-imperialista, negra, feminista, anticorrupção e, também, em permanência, anticapitalista - mas nunca confundiu reivindicações democráticas com a defesa da reforma do regime democrático-liberal.

Os socialistas reconhecem que no Brasil há uma revolução democrática por fazer, porque há tarefas democráticas pendentes. Distingue, todavia, aquelas palavras de ordem democráticas que podem ameaçar o regime democrático daquelas que podem ajudar a fortalecê-lo.

É sabido que a luta por uma segunda independência pode assumir um caráter transicional, ou seja anticapitalista, assim como a luta pela reforma agrária. Pode, mas não há garantias fora do processo real de mobilização do proletariado e seus aliados sociais.

Até estas palavras de ordem estarão condicionadas à dinâmica de classe do processo de luta. O conteúdo social anticapitalista dependerá da entrada em cena do movimento dos trabalhadores de forma independente.

Senão, nem isso.

Admito, portanto, que existem reivindicações democráticas progressivas. Mas, eleições para uma Constituinte?

O que há de revolucionário em defender uma nova Constituinte no Brasil, em 2015, trinta anos depois do fim da ditadura, se a mudança da Constituição tem tudo para ser regressiva?

Ou a eleição do atual Congresso, realizada mais de um ano depois de Junho de 2013, não favoreceu uma representação ainda mais reacionária?

O terceiro argumento é o que afirma que a campanha pela Constituinte permite uma frente com mais aliados, maior possibilidade de mobilização.

A política marxista é dialética e não absolutiza as formas fora dos contextos e dos conflitos. Há mobilizações de massas que são progressivas e outras que são reacionárias. Para os socialistas a interpretação do que pode ser progressivo está condicionado por um critério de classe: o que ajuda a avançar a organização e favorece o combate dos trabalhadores e seus aliados. Existem reivindicações democráticas que podem ser progressivas em um contexto e regressivas em outro.

O direito ao habeas corpus é progressivo, quando o reivindicamos para retirar um líder dos sem terra da cadeia, mas é reacionário quando é esgrimido para poupar Paulo Maluf da prisão. A luta contra o sigilo bancário dos deputados é legítima, mas é reacionária quando é usada para investigar a transferência de verbas das cooperativas da Reforma agrária para financiar as ocupações de latifúndios. A luta contra os paraísos fiscais é progressiva, mas os tribunais especiais para presidentes, governadores e deputados são reacionários.

Por essa razão, mas por outro ângulo, não é correto, também, nas atuais circunstâncias, levantar a bandeira do impeachment de Dilma Rousseff. O impeachment é a proposta da derrubada de Dilma Rousseff em um julgamento feito pelo Congresso Nacional, ou seja, a derrubada de Dilma pelo PSDB e seus aliados em negociação com a ala do PMDB de Eduardo Cunha.

Na atual conjuntura, essa bandeira seria uma capitulação da oposição de esquerda à oposição de direita. A queda do governo Dilma seria progressiva, desde que acontecesse tendo como sujeito social os trabalhadores e a juventude. Se Dilma viesse a ser derrubada pela oposição de direita, hipótese ainda longínqua, mas não descartável, estaríamos diante de uma evolução desfavorável da situação política.

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