A Democracia burguesa e seus limites
Para o amigo Rômulo Lima Vieira
Por: Jóe José Dias
Os Estados Unidos têm o melhor congresso que o dinheiro pode comprar
Mark Twain
Mark Twain
Uivemos, disse o cão.
Livro das vozes
Livro das vozes
No
livro “Ensaio sobre a Lucidez”, o genial escritor universal José
Saramago narra o dia – um de grandes tempestades – em que uma população
sai para votar. Como chove muito e não aparecem os eleitores, um
burburinho generalizado corre as salas de votação: será que não virá
ninguém votar? Um mal-estar generalizado toma conta dos fiscais e
encarregados pelo bom andamento das eleições. “Se as coisas andassem
mal seria baixíssima adesão”, pensavam. No entanto, à tarde, já no final
do processo, milhares de pessoas compareceram para a votação, formando
filas quilométricas. Até aí tudo normal, para a felicidade dos
protagonistas do processo, não fosse o inesperado resultado: quase 70%
da população havia votado em branco. Uma verdadeira catástrofe para as
instituições democráticas daquele país, evidentemente, já que se
tratavam das eleições de sua capital.
Esse
ato de lucidez, aparentemente inocente, colocava em xeque a
legitimidade do processo eleitoral, das instituições democráticas, dos
partidos políticos e dos cargos daqueles representantes. Uma catástrofe!
Uma nova eleição então fora marcada, pois a burguesia local pensava
tratar-se de uma espécie de “histeria” social. Na semana seguinte então
voltaria a população para as urnas para exercer seu papel cívico e
eleger seus representantes políticos. Porém, nova tragédia ocorre: a
porcentagem de votos brancos aumenta, alcançando 80% do total.
É
então que se iniciam os problemas; os três partidos políticos: o PDE,
de esquerda e reformista, o PDD, da direita, e o PDM, do meio (centro),
agem em nome dos direitos da liberdade e da democracia: UNIDOS,
conspiram de todas as formas contra a população. Mentiras políticas,
intrigas judiciais, uso do aparato repressor das forças militares e
propagandas midiáticas se misturam como forma de manutenção da ordem.
Está aberta a caça aos subversores que votaram em branco.
Esse
“esmaecimento cívico” muito bem narrado por Saramago é o mote central
para uma discussão mais profunda: a da democracia burguesa e seus
limites. Em boa medida é este o núcleo da obra, já que é, a partir de
seu questionamento por meio do voto em branco, que se desenvolverão os
problemas e as alternativas para a sua superação. José Saramago antevê
uma saída para este impasse. Pela via da ficção (este território em que
reflexão, humor, arte, história e política se entrosam), o escritor
português desvela as fraquezas e fragilidades do sistema democrático
burguês. Porém, antes de adentrarmos neste território, cabe-nos entender
uma questão de âmbito mais geral: afinal, o que é Democracia?
O
termo fora cunhado na Grécia Antiga no século V a.C. e designa “governo
do povo”. Nasce para denotar os regimes políticos das antigas
cidades-Estado gregas, principalmente Atenas, e é antônimo de
Aristocracia (governo de aristocratas). Embora na teoria sejam
definições opostas, na prática social nem tanto. É que, no sistema
político da Atenas deste período, por exemplo, só participavam da vida
política homens maiores de 21 anos. Escravos, estrangeiros (aqueles
nascidos fora de Atenas) e mulheres não tinham esse direito. Em suma,
embora abrangesse um corpo político mais diverso e amplo que uma
aristocracia reinante, o poder ainda se concentrava em torno de uma
elite. Somente com a conquista e o aprofundamento do sufrágio universal,
durante o vizinho século XX, essa relação se amenizou. Bem, será mesmo?
Nos
dias atuais o conceito de Democracia ganhou novos contornos. Da Grécia
antiga até os dias de hoje vários impérios dominaram a Europa em sua
quase completude ou parcialmente. Tivemos, por exemplo, os romanos, o
império bizantino, o império otomano (de origem árabe), a dinastia
Habsburgo, os árabes na península ibérica, o império russo, o
Austro-Húngaro, dentre outros. A Europa ocidental passou por um longo
período medieval, encerrado – na prática – somente no século XV, após a
queda dos mozárabes na península ibérica e o surgimento dos dois
primeiros estados modernos, Portugal e Espanha. A ascensão da burguesia
na Europa e a maturação dos antigos estados medievais, culminando no
consequente surgimento dos estados modernos, capitalistas, exigiu uma
remodelação da vida social. Um novo sujeito social entraria em cena: a
classe operária, que, em maior ou menor grau – a depender do período –,
dividiria a cena política com a burguesia. Um novo mundo surgia,
completamente distinto e muito mais dinâmico que seus precedentes.
Hoje,
para compreendermos o conceito de Democracia, de outros dois se faz
necessária a compreensão: o de “Estado” e o de “regime político”. Como
Estado podemos compreender o conjunto das instituições públicas dentro
de um determinado território; nos estados capitalistas são de três
esferas: as instituições político-administrativas (aquelas vinculadas
aos três poderes), as instituições coercitivas (as forças armadas e as
polícias civil e militares) e as instituições de ensino, aquelas
responsáveis por imprimir o ideal de vida burguês como único verídico e
possível dentro de nossa sociedade. São estas talvez as mais importantes
para a manutenção da ordem em tempos de paz, por serem as responsáveis
pela criação do código de valores que guiam a vida pública nos âmbitos
geral e particular. A estas enquadram-se as escolas, as instituições
técnicas e as Universidades. Suas diretrizes políticas são guiadas a
partir de um ministério exclusivo: no caso do Brasil, por exemplo, o
MEC – Ministério da Educação e Cultura.
Todavia,
o Estado e suas instituições, por si só, nada fazem. Não isoladamente,
ou desconectadas. Pensemos o Estado como se fosse um motor, de qualquer
espécie: um amontoado de peças esparsas, funcionando isoladamente, não
são capazes de fazer a máquina funcionar; é preciso que trabalhem em
conjunto, conectadas, para que se gere a propulsão necessária para o seu
funcionamento. Com o Estado ocorre mais ou menos o mesmo: assim como as
partes de um motor, as instituições do Estado precisam se conectar de
alguma maneira.
Mas
um Estado não é uma máquina, onde todas as peças, independente de seu
tamanho, têm valores similares. As suas instituições funcionam
diferentes, embora conectadas. Ou seja, a depender do regime político
por que passa o país, haverá sempre aquela que, politicamente, se
sobreporá às outras. Vejamos: se estivermos diante de uma ditadura
militar bonapartista, as instituições coercitivas serão as mais
importantes, aquelas que ditarão a vida política daquele país; já se
estivermos diante de uma democracia burguesa, com um parlamento eleito
pelo voto popular, as instituições mais importantes serão as
político-administrativas. Portanto, regime político nada mais é que a
forma como funciona um determinado estado, como suas instituições se
organizam e se conectam para que funcione de acordo com os interesses da
classe que a controla.
É
fácil agora compreender a atuação política liberal de vários políticos,
que lutam pela moral e pelos bons costumes, assim como pela propriedade
privada. Isto é, seja pela coerção bruta e direta, ou pela coerção
sutil de um regime democrático, a função do Estado é a de proteger a
propriedade burguesa e garantir a exploração das demais classes sociais.
Assim,
da perspectiva burguesa, é indiferente o regime utilizado em um
determinado Estado desde que esteja garantido o seu direito de explorar
em paz. Contudo, é insofismável que, concomitante à ótica do explorador,
a Democracia é, sem dúvida, o regime mais seguro e confortável de
coerção. Sim, a burguesia adotou-a como seu regime favorito. Isso, em
grande medida, graças as suas próprias conquistas ainda na adolescência
do capitalismo, no final do século XVIII. Pressionada pelas massas
camponesas e de trabalhadores, a burguesia se viu obrigada a garanti-las
após tomar o poder na França. Referimo-nos às liberdades individuais e
coletivas: de expressão, de organização, de manifestação, de reunião,
etc.
Outra
conquista importante da democracia burguesa é a denominada “liberdade
jurídica”, na qual, segundo o princípio, todos são iguais perante à lei.
Ou seja, todos temos os mesmos direitos, deveres e as mesmas
obrigações.
Conquistas
importantes e que devem ser, sem dúvida, defendidas, pois garantem –
mesmo que de forma assaz limitada – o direito de os trabalhadores agirem
minimamente na vida política. Na ditadura militar, por exemplo, estavam
cerceados os direitos de organização e de manifestação. Vinte anos
foram necessários para que a superássemos; somente com as greves
operárias dos finais dos anos 70 essas liberdades foram minimamente
restabelecidas e os trabalhadores puderam retornar à cena política do
país.
Todavia,
há aí um limite, uma fronteira. Se é verdade que cabe-nos defender a
democracia, já que a ela devemos essas liberdades mínimas,
facilitando-nos e muito nossa organização e mobilização, devemos ter em
mente que essa defesa deve ser apenas tática, jamais estratégica. Ou
seja, não deve ser jamais um fim a defesa incondicional da democracia
burguesa, como apregoam os partidos políticos eleitoreiros, como PT,
PCdoB, PSOL, que elaboram seus programas visando ao parlamento burguês.
E
aí nos deparamos com algumas de suas fraquezas: as mentiras da
Democracia. Isso porque, se analisarmos veremos que suas conquistas são
pela metade, ou, no máximo, são de fato aplicáveis somente para alguns. É
aí que reside a farsa. Vejamos: é verdade que temos liberdade de
organização e de mobilização, mas basta uma greve atrapalhar os negócios
da burguesia e a justiça logo a declara como ilegal; todos temos o
direito à manifestação, mas não é incomum vermos trabalhadores sendo
duramente agredidos e reprimidos o tempo todo*.
É igualmente verídica a informação de que somos todos iguais perante a
lei. No entanto, não costumamos ver as forças de repressão invadirem
bairros nobres e palacetes, dando tiros para tudo quanto é lado e
matando civis inocentes como se fossem pragas; esse é um problema que a
classe trabalhadora, jogada à força nas periferias, enfrenta
diariamente. Do mesmo jeito, saúde, educação e saneamento básico são
direitos universais, mas basta visitarmos as periferias para vermos que a
teoria não se aplica à prática.
É
também insofismável, da perspectiva dos valores democráticos, o direito
à organização visando à disputa pelo poder, em um partido político. No
entanto, partidos menores, além de não terem o mesmo tempo de aparição
nos programas eleitorais televisivos, sequer são chamados para os
debates públicos. São de fato “apagados” do processo como um todo,
tornando-se – na prática – meramente caricaturais no processo. Uns
argumentam, no entanto, que, com o amadurecimento de nossa democracia,
essas distâncias diminuirão e teremos então uma unidade mais equânime de
direitos. No entanto, o que vem ocorrendo é o seu inverso: medidas
parlamentares têm reduzido o espaço de siglas menores e cerceado o
direito às manifestações, como foi o caso da chamada “Lei
antiterrorismo”, sancionada pela ex-presidenta Dilma que, na prática,
além de criminalizar os movimentos sociais, aumentou consideravelmente a
população carcerária do país.
Crer
o contrário é ilusão. O velho Trotsky afirmava – e com razão – que a
democracia burguesa, mesmo em suas origens, não tinha bases políticas
verdadeiramente democráticas. E se retornamos à alegoria de Saramago,
descrita no início da narrativa, notaremos que à “revolução silenciosa e
branca” protagonizada pelos habitantes da inominada cidade, seguiu-se
uma ofensiva de TODOS OS PARTIDOS PARLAMENTARES contra as massas. À
parte de suas opiniões divergentes sobre a forma de governabilidade do
Estado burguês, os três partidos, de esquerda e reformista, da direita ou do centro,
agiram como classe, defendendo seus interesses em detrimento dos
direitos de liberdade da maioria. Isso nos leva a crer que a tolerância
de valores democráticos dura até que sejam exercidos contra os
interesses superiores que se contentam com a acepção de uma democracia
meramente formal. Em
suma, o parlamento burguês e suas formas de governança foram criados
pela burguesia para atender às suas necessidades políticas. Portanto,
novas formas de governo que atendam a outras classes sociais exigirão
novas estruturas de poder, novas instituições e um Estado com um caráter
distinto do capitalista burguês. Qualquer mudança desse cenário, no
capitalismo, é ilusão. Revolução não combina com reforma.
A
democracia burguesa é ilusória, sendo sua característica principal a
eleição de seus governantes por meio do voto universal. Isto quer dizer
que todos, em uma democracia burguesa, têm o direito de exercer este
direito. Isto quando não são obrigados, a depender da nação. Assim
falando, até soa a galhofa este termo: sufrágio universal. Todavia, é
bem o seu inverso. O voto universal foi uma grande conquista, também
arrancada com muita luta. No Brasil, até o final do século 19, só podiam
votar aqueles que fossem concomitantemente homens, brancos e
proprietários. Mais tarde, o direito ao voto foi estendido aos pobres,
mulheres e analfabetos. No Brasil República os negros nunca foram
oficialmente proibidos de votar. No entanto, como a maioria dos
ex-escravos era analfabeta, a população negra acabava de fato excluída
das eleições. Com relação às mulheres, se considerava que elas já
estavam representadas por seus maridos e por isso não precisavam votar.
Pelo
seu valor histórico e político, o sufrágio universal acabou se tornando
o principal critério para avaliação do nível de liberdade de uma
sociedade. Convencionou-se, assim, que um país, para ser considerado
livre, deve garantir o voto universal a todos os seus cidadãos em idade
de exercê-lo. Todos os demais direitos, igualmente importantes, como
saúde, educação, direitos à moradia e ao emprego etc, foram escanteados.
Gradualmente, foi-se apagando estes direitos como fundamentais para uma
sociedade democrática. E assim, a liberdade humana ficou reduzida ao
direito de, uma vez a cada quatro anos**, apertar um botão.
Como salientou Saramago em 2005, no fórum social mundial, em Porto Alegre (link aqui):
“A democracia está aí, como se fosse uma espécie de santa do altar, de
quem já não se esperam milagres, mas que está aí como uma referência,
uma referência: a democracia. E não se repara que a democracia em que
vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. Porque o
poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera
política, a tirar um governo de que não gosta e a pôr outro de que
talvez venha a gostar. Nada mais! Mas as grandes decisões, as grandes
decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos quem é. As
grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, as
organizações mundial do comércio, os bancos mundiais... Nenhum desses
organismos é democrático! E como é que podemos falar de democracia, se
aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos
democraticamente pelo povo?”
Em
outras palavras, as decisões que de fato têm o condão de delinear os
caminhos da macropolítica nascem nos escritórios das grandes
organizações financeiras transnacionais, antidemocráticas por sua
natureza, considerando que não precisam se submeter a eleições para
impor políticas econômicas domésticas consentâneas com os interesses
particulares do mercado financeiro. Como forma de melhor exemplificar a
discussão, é como se consentíssemos o direito de uma pessoa se apropriar
de nosso salário por um período de quatro anos, dando-lhe aval
incondicional para utilizá-lo da maneira que melhor lhe aprouvesse, sem
ter que nos dar grandes satisfações do destino dado ao nosso dinheiro. É
basicamente isso o que fazemos na democracia burguesa. Não somos
agentes políticos; simplesmente títeres que fazem parte de uma
democracia formal que serve não somente para justificar a classe
dominante no poder, mas para nos dar a impressão que somos parte ativa
nesse processo.
Essa
falsa equidade de poderes é garantida pela ilusão do voto. Se na vida
cotidiana, patrões e trabalhadores têm interesses inteiramente opostos,
no dia das eleições seus votos têm a mesma proporção. E esse fato,
cotidianamente, é inserido pela mídia e pelas propagandas oficiais na
cabeça da população como forma de justificar e comprovar um dos
princípios básicos da democracia: a igualdade de direitos. Não à toa as
insistentes alegorias das eleições como a festa da democracia. Este é o
ponto. E aí pouco importa se, no mandato que se seguirá, os
trabalhadores terão que enfrentar diretamente o governo como seu
inimigo. Pouco importa igualmente as mentiras, a corrupção, ou a
exclusão de outros candidatos do processo eleitoral. O importante é que
se garantiu o direito ao voto a todos os eleitores. E se as coisas derem
errado, paciência, quem mandou não votar corretamente?
Foi
exatamente esse condicionamento programado, que insere na cabeça do
trabalhador o seu papel na sociedade, o argumento questionado em “Ensaio
sobre a Lucidez”. Enquanto a campanha do TRE acusa: “Não desperdice seu
voto! Vote!”, aludindo obviamente à necessidade daquilo que a burguesia
chama de “voto útil”, já que, na prática, é ele quem provoca essa
ilusão da democracia, José Saramago inverteu a lógica, lançando luz ao
questionamento da democracia burguesa, aos seus valores e aos seus
grandes limites democráticos.
Todavia,
mesmo que assim o seja, que voto, eleição, democracia sejam um
embuste…, apesar de todos esses fatores, por que não a utilizamos a
nosso favor, já que temos garantidos o direito ao sufrágio universal?
Por que não utilizamos as eleições para elegermos candidat@s operári@s,
comprometidos com um programa classista de rompimento com essa
democracia?, poderia questionar-nos um desavisado. E, embora parte da
questão estivesse já resolvida, a resposta seria: por causa da
interferência do capital no processo eleitoral. Em outras palavras: ao
poder econômico dos principais representantes da burguesia.
Não
é segredo para ninguém os custos de uma campanha vencedora. Processo
eleitoral após processo eleitoral, as cifras sobem. Milhões e milhões de
dólares são gastos naqueles candidatos favoritos ao pleito e aos
preferidos da burguesia. Campanhas milionárias, com marqueteiros
internacionais, “doações” gigantescas feitas por grandes empresários,
milhares de cabos eleitorais, um espaço generoso de divulgação de sua
campanha nos meios de comunicação são a dinâmica das campanhas
eleitorais não somente aqui no Brasil, mas em Portugal, nos Estados
Unidos, na França, Alemanha, Rússia e África do Sul, para citar alguns
países que conseguimos dados. E neste processo, além do orçamento
divulgado, há obviamente aqueles escamoteados pelas finanças eleitorais,
oriundos de “caixa 2” de grandes corporações e/ou até de setores da
“economia paralela”, como o do tráfico de drogas, por exemplo.
Os
candidatos operários simplesmente desaparecem, esmagados pelo peso de
milhões de dólares. É bastante comum, depois de um processo eleitoral
que dure em torno de um mês, uma campanha operária, com caráter
socialista, passar praticamente despercebida nesse processo. Nessas
condições, não é de se admirar que os trabalhadores acabem votando em
seus próprios verdugos, naqueles que depois aplicarão as políticas do
interesse daqueles que financiaram suas campanhas. É como diz o ditado
popular: “quem paga a banda escolhe a música”.
Todavia, como já dito, a democracia é indispensável à classe operária, pois, como afirmou Rosa Luxemburgo, “somente
mediante o exercício de seus direitos democráticos, na luta pela
democracia, pode o proletariado adquirir consciência de seus interesses e
de sua tarefa histórica”. E tanto
é do seu interesse, como é igualmente sua tarefa histórica, superá-la
nos moldes que a temos hoje. Mas como o fazê-lo? Saramago dá uma dica.
No
mesmo livro, após descrever vários conflitos entre a elite governante
local e a classe trabalhadora, o exímio escritor português narra a saída
desta elite amedrontada. Durante à noite, temerosa de ser vista,
escapole pelas esquinas da cidade. Decorre daí talvez uma das cenas mais
interessantes e belas da narrativa: a população, sabendo desse ato
covarde, começa a acender e apagar as luzes de suas casas no momento da
fuga, como a avisar-lhes do conhecimento do ato.
A
partir deste ponto, forma-se um cerco na cidade, decorrendo dele a
ausência de todos os serviços públicos. Isso mesmo: covardemente a
burguesia foge, levando com ela toda a estrutura de serviços e
burocrática da cidade. A ideia, certamente, era deixar a população à
míngua, fazendo sentir-se desesperada pela carência dos serviços
básicos. Saída gloriosa e que forçaria a sua volta, não fosse o fato de o
inesperado acontecer: invés do caos social que a ausência dos serviços
públicos trariam aos moradores, nasceram formas de organizações
paralelas, oriundas de organismos populares de poder, amplamente
democráticas e que tiravam toda a política local necessária para a ordem
e a manutenção social. EUREKA!! Saramago, a seu jeito, narrou uma forma
de poder já conhecida e testada entre os trabalhadores: os conselhos
populares.
José
Saramago era comunista. Não esconde de ninguém sua convicção no
socialismo. E mais que comunista, foi um trabalhador e grande dirigente
político, imerso na base. Além do conhecimento histórico, do qual
certamente tirou grandes lições políticas e literárias, vivenciou in loco
uma revolução em seu país, a “Revolução do Cravos”, onde certamente
testou algumas políticas como também presenciou o funcionamento
orgânico, coerente, poderoso e altamente democrático dos conselhos
populares, surgidos no calor da revolução como uma organização de duplo
poder da classe trabalhadora. Conhecia, mais do que ninguém, a
capacidade organizativa dos operários, principalmente em momentos de
crise revolucionária. E sabia não somente da necessidade premente de
superação da democracia burguesa, como da possibilidade de cumprir esta
tarefa.
Em
“Introdução à crítica do direito de Hegel”, Engels e Marx afirmaram que
a teoria se transforma em poder material tão logo se apodera das
massas. Ou seja, apesar de sua força, a democracia burguesa está longe
de ser invencível. Como toda a construção humana, é falha. E pode
sucumbir, às vezes em momentos que não se espera. Cabe à classe
trabalhadora estar pronta para o confronto. Organizar conselhos
populares é fundamental para o amadurecimento político, mas sozinhos não
podem alcançar o poder. As massas trabalhadoras precisam sim estar
organizadas em organizações classistas, porém, mais do que isso,
necessitam de um programa centralizado de classe capaz de muni-las
politicamente para o confronto. E isso só é possível por meio de um partido político que não tenha como foco o parlamento, mas a superação do capitalismo pela via revolucionária.
Um partido que, ao contrário daquela esquerda em “Ensaio sobre a
Lucidez”, que se apoia na democracia para defender interesses políticos
distintos dos nossos, forge um programa de classe e socialista que vise à
superação desta democracia, pelas massas trabalhadoras do mundo. É a
isso que o PSTU aqui no Brasil e a LIT-4QI internacionalmente se prestam.
“As
coisas humanas não são eternas e vão sempre em declínio desde o
princípio até ao seu último fim”, afirmou sabiamente Dom Quixote.
Somente uma revolução de caráter socialista, regida por conselhos
populares, é capaz de destruir o Estado burguês e suas instituições já
podres. Somente com o socialismo a democracia poderá se estabelecer como
sistema universal, livre das amarras do poder econômico. O Estado
operário será controlado pela maioria explorada e oprimida e a
democracia operária se revelará como o regime das maiores liberdades
democráticas que o mundo já conheceu.
Não
nos esqueçamos que, historicamente, os atos mais bárbaros e terríveis
cometidos pela humanidade, como as guerras, os genocídios, as
escravidões e a subjugação de povos e culturas inteiras, não se deram
por meio da desobediência civil, mas pelo seu inverso. Foram os “cegos” e
os crentes que se prestaram ao serviço de verdugos e carrascos da
humanidade. Sejamos então desobedientes, pois somente dessa forma
poderemos tomar consciência das amarras que nos prendem e, então, lutar
para destruí-las. Somente assim poderemos eliminar a exploração do homem
pelo homem. Eis a tarefa do socialismo, que, ao fazê-la, assentará as
bases para a dissolução lenta e gradual do próprio Estado operário, seu
poder e suas instituições, ou seja, para a superação da democracia e a
conquista da verdadeira liberdade humana: o comunismo, que fará a
humanidade realmente começar a caminhar.
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Notas:
* Exemplos
não faltam no Brasil e no exterior, porém, talvez uma das imagens mais
emblemáticas a esse respeito vem do estado do Ceará, onde os professores
estaduais foram duramente reprimidos pela polícia em um ato político em
defesa de seus direitos.
** A regra se aplica para todas as nações democráticas, alterando somente o período eleitoral de cada país.
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