O mundo "nas mãos" de poucos: a pobreza escancarada em um capitalismo cada vez mais decadente

Contrastes - Ügur Gallen
Por: Jóe José Dias

A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece.
Antonio Gramsci


Ela virá, a revolução conquistará a todos o direito não somente ao pão, mas também à poesia.
Liev Davidovich Bronstein


O mais recente relatório sobre desigualdade elaborado pela ONG britânica Oxfam, denominado “Tempo de Cuidar” foi publicado neste dia 20 e atesta algo alarmante: a explosão da desigualdade nos últimos anos. Segundo o levantamento, divulgado tradicionalmente próximo à reunião do Fórum Econômico de Davos, 2.153 bilionários detém uma riqueza superior à de 4,6 bilhões de pessoas, ou seja, mais da metade da população do globo juntas possuem uma riqueza inferior a um pouco mais que duas mil pessoas privilegiadas.

O mesmo relatório deflagra outras contradições gravíssimas, como a de 1% da parcela mais rica do mundo ter acumulado mais que o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas. Esses números são exorbitantes e se tornam ainda mais escandalosos na medida em que, a partir do mesmo relatório, comprovam que a quantidade de bilionários no mundo dobrou na última década. Ou seja, a partir da crise capitalista de 2008, onde milhões e milhões de pessoas foram jogadas na miséria e outras tantas milhões se instalaram abaixo dessa própria linha, um punhado de pessoas – basicamente por meio de especulações em bolhas financeiras – se tornaram bilionárias.

Nesse cenário, a diferença entre homens e mulheres confere contornos dramáticos ao já profundo abismo que separa ricos e pobres. Os 22 homens mais ricos do mundo têm uma riqueza superior à de todas as mulheres na África. Segundo a ONG, o trabalho feminino não pago (a partir dos 15 anos) representa 12,5 bilhões de horas diariamente que, caso remuneradas, acrescentariam 10,8 trilhões de dólares à economia mundial, três vezes mais que a indústria.

Para se visualizar o problema, suponhamos que uma pessoa trabalhe durante cinquenta anos ininterruptos e que receba um vencimento diário de $ 50.000,00 (cinquenta mil dólares), não gaste um único centavo desse ordenado e aplique o dinheiro a um rendimento de poupança (4% ao ano); ao fim desse período, essa pessoa, ainda assim, não acumularia a fortuna de 1 bilhão de dólares. Longe disso! Um outro exemplo, para ilustrar ainda mais o caso: se fosse possível uma pessoa juntar 10 mil dólares por dia desde o período reconhecido como o da construção das pirâmides do Egito (cerca de 3 mil anos atrás), ainda assim teria hoje apenas 1/50 da fortuna média dos 5 maiores bilionários do mundo.

Vê-se logo que essas pessoas não trabalharam para adquirir estas fortunas. Pelo contrário! Historicamente, estamos falando de uma classe que explora, espolia e age na economia como um agiota. Sim, um bilionário alcança este status às custas da falência e do empobrecimento de outros. Um bilionário não adquiriu sua fortuna com o seu o trabalho, mas explorou outras pessoas que trabalharam para ele. Portanto, se a lógica de que trabalhar engrandece a alma e o homem, certamente é justa a reflexão de que o trabalho não o enriquece.

Paralelamente a este quadro, quase a metade da população mundial sobrevive com 5,5 dólares diários ou ainda menos. Situação que vem se agravando por conta da crise global e pela necessidade orgânica dos capitalistas em manterem suas taxas de lucro. É neste cenário que se desenrola o aprofundamento da lógica neoliberal, que corta políticas sociais, que desmonta os serviços públicos, que cria uma complexa política tributária que privilegia os grandes monopólios e favorece a uma pequeníssima elite financeira, e que espolia a riqueza dos países periféricos por meio do mecanismo da dívida pública e das privatizações. Estes fatores apenas agravam esta situação.

É um fato: a desigualdade econômica está fora de controle. E esta é uma conclusão tirada não à esmo, a partir da divulgação fria destes números, mas é uma consequência de estudos históricos – dos quais esta ONG é apenas uma das protagonistas – em que se demonstram o seu aprofundamento e não o seu inverso. Essa é a conclusão tirada não somente por veículos não governamentais, como a Oxfam, ou de classe, mas igualmente pelos principais tabloides financeiros da burguesia mundial, como o Financial Times, que em artigo publicado em novembro do ano passado (2019), questiona “Why capitalism needs to be reset in 2020”, ressaltando estes e outros fatores.

O jornal francês Le Monde (link original aqui), outro periódico econômico burguês de grande prestígio, estampou, em 24/01/2020, a seguinte manchete: « Le capitalisme n’est pas mort, bien sûr, mais il a de sérieux problèmes » : à Davos, des inquiétudes et des promesses (“O capitalismo não está morto, é claro, mas tem sérios problemas”: em Davos, inquietudes e promessas), no qual afirma:
Esta obsessão que temos em maximizar os lucros para os acionistas levou a uma desigualdade incrível e a uma urgência planetária. (...) “Os cidadãos apoiavam o capitalismo desde que oferecesse oportunidades para criar capital para si e para seus filhos. Isto não é mais possível, lamentavelmente”, afirmou o analista político estadunidense Ian Bremmer, antes de continuar: “O capitalismo não está morto, é claro, mas tem sérios problemas”.

Outro tabloide reconhecido que expôs o problema mais diretamente e de maneira ainda mais direta e crua foi o espanhol El Pais. Com a manchete “Como medir de forma más justa la economía”, o artigo publicado em 26/01/2020 assim inicia:
Um novo mundo surge inexoravelmente. Enquanto o velho resiste a desaparecer. A ideia de crescimento a todo custo que caracteriza o atual modelo econômico está sendo questionada tanto pela comunidade científica quanto por organizações multilaterais e alguns governos. A Grande Recessão deixou para trás um rastro de desigualdade que o aumento da atividade produtiva subsequente não conseguiu eliminar; o aquecimento global racha o planeta, construindo um futuro cada vez mais preocupante para as novas gerações, enquanto a tecnologia que minimiza esses dois reatores já está ativa, embora seu impacto provavelmente não esteja chegando tão longe quanto deveria, nem é possível quantificar com precisão. Os cidadãos reclamam. Aumentam as revoltas, os conflitos, o descontentamento. E os partidos populistas se fortalecem nas sociedades cansadas de seus governos colocarem a economia como fiel da balança, em vez de seu bem-estar. Cansadas de sempre ganharem os mesmos.

Até mesmo a Forbes vem discutindo o assunto, embora, como é de se esperar, com outro tom. Em seu site oficial, a revista – em sua seção africana – acusa não o capitalismo pelas crises cíclicas e pelo aumento exponencial e gradual da miséria, contrapondo ao crescimento exponencial, na mesma medida, do número de bilionários no planeta; acusa sim a ingerência dos governos. Desconhece a crise global e, com uma hipocrisia incrível e uma desonestidade intelectual invejável, desonera de responsabilidades de todas as crises as grandes corporações e as políticas neoliberais, que têm levado à miséria extrema de mais da metade da população mundial, bem como à destruição do planeta, para satisfazer a sanha de lucros da burguesia. Ei-la:
Nada é menos verdadeiro. Sem ofender os intelectuais biliosos, o problema é, na realidade, devido às políticas desastrosas realizadas pelo governo e, pior, a uma profunda ignorância da economia de mercado. É hora de acertar as contas.

Vemos aqui alguns exemplos de como a matéria vem sendo tratada por alguns setores da burguesia. É certo que a perspectiva analítica destes periódicos é burguesa. Suas análises políticas, quando muito, recaem no reformismo, na necessidade urgente de se reformar o capitalismo no intuito de se reduzir estes abismos sociais, como o citado El país. Este periódico chega a ressaltar a necessidade de se reformular a leitura econômica, hoje baseada no crescimento a partir dos PIBs nacionais, competitiva e destrutiva, para uma perspectiva analítica mais socioambiental. Porém, dentre as inúmeras lições que Marx e Engels nos deram n’O Capital, por exemplo, é que o capitalismo é indomável, é incontrolável, e que, portanto, qualquer capacidade de reformá-lo será em vão.

Ademais, é reconhecida a capacidade que tem o capitalismo de jogar para as suas periferias os efeitos mais graves de suas correntes crises. Isso não é novidade e vários estudos, a começar pelo próprio O Capital, apontam como esse processo é feito. No entanto, aludindo a Hegel, o acúmulo de contradições quantitativas sobre um objeto gera uma contradição qualitativa, tornando, após estas inúmeras contradições, o antigo objeto algo completamente diferente do que era. Ou seja, cabe-nos agora saber como o acúmulo de contradições já enormes e históricas do capitalismo serão resolvidas, ainda mais que a elas foram acrescidas outras de caráter econômico, energético, ambiental, social, migratório, racial, de valores burgueses e políticos.

Sim, o capitalismo está em crise. E esta é grave, acentuada. A despeito de seus picos cíclicos, em seu bojo arrasta uma situação de miséria irrecuperável, onde não somente se polarizam e se agudizam a luta entre as suas duas classes fundamentais. Dela advém também o surgimento de novas contradições e o aprofundamento de outras tantas. A desigualdade cada vez mais crescente, a perda de direitos oriundas do mesmo fenômeno que provoca essa desigualdade, o aumento da miséria global, da violência urbana, das condições cada vez mais insalubres de sobrevivência da classe trabalhadora mundial, da poluição geral e o consumo cada vez mais voraz dos recursos naturais seguido de uma destruição massiva de espécies animais e vegetais em prol das grandes corporações e do lucro infindável, não só desnuda o caráter destrutivo do capitalismo, como mostra sua incapacidade de manutenção equilibrada. Superá-lo não se tornou apenas uma reparação histórica, de direito, mas uma questão de necessidade e de sobrevivência.

A máxima de Rosa Luxemburgo, Socialismo ou Barbárie, é ainda atual. Aliás, está mais atual que nunca. E se antes a barbárie não era vislumbrada por muitos, hoje não há quem a não sinta. Se o monstro era outrora horripilante, está agora irrecuperável, irreconhecível. Grande de fato. Porém, como dizia Friedrich Nietzsche, “Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro”. Em suma, de dentro da barriga da besta não conseguiremos destruí-la. Pelo contrário: seremos consumidos por ela. Ao capitalismo não cabe reformá-lo, ou, como diz o Financial Times, redefini-lo; é preciso aniquilá-lo pela raiz, antes que a nós, humanos, ele nos destrua.

O esgotamento do modelo neoliberal, descortinado e já reconhecido, em certa medida, por muitos dos periódicos burgueses, apenas deixa claro a necessidade da construção de uma saída socialista e revolucionária para uma crise sem volta e que cada vez mais aprofundará a miséria social. Lutemos por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres. E que sonhemos, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. E então venceremos!! Cedo ou tarde! RUMO AO SOCIALISMO!!

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Referências
:

AMEAÇA COMUNISTA. In: https://praxis.blogs.sapo.pt/ameaca-comunista-25478;

Como medir de forma más justa la economía. In: https://elpais.com/economia/2020/01/24/actualidad/1579870950_561660.html;

Explosão da Desigualdade: 1% concentra riqueza duas vezes maior que 7 bilhões de pessoas juntas. In: https://www.pstu.org.br/explosao-da-desigualdade-1-tem-riqueza-superior-a-de-7-bilhoes-de-pessoas/;

Le capitalisme n'est pas mort... In: https://www.lemonde.fr/economie/article/2020/01/24/a-davos-le-gotha-des-entreprises-promet-un-nouveau-capitalisme_6027079_3234.html;

Non, le capitalisme n'est pas mort. In: https://forbesafrique.com/non-le-capitalisme-nest-pas-mort/;

O que é crise econômica. In: https://www.pstu.org.br/o-que-e-crise-economica/;

O que é dívida pública e como ela funciona. In: https://praxis.blogs.sapo.pt/o-que-e-a-divida-publica-e-como-ela-22233;

Pra que serve um bilionário?. In: https://www.youtube.com/watch?v=f50GsBvU_bY;

Time to care: unpaid and underpaid care work and the global inequality crisis. In: https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/620928/bp-time-to-care-inequality-200120-en.pdf;

Why capitalisme needs to be reset in 2020. In: https://www.ft.com/video/0dae2a4a-8c5c-4718-a540-b1fefae10dc4?playlist-name=editors-picks&playlist-offset=0.

MATERIAIS ACESSOS DURANTE A SEMANA ANTERIOR À POSTAGEM DO ARTIGO, QUE ORIGINALMENTE SAIU NO BLOG PRÁXIS, EM 28/01/2020
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Comentários

  1. Artigo muito competente. Visitei alguns links para confirmar as informações. Abraço, Júlia.

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