De Os Flintstones a Os Jetsons: o poder das ideologias

Para o amigo Diogo Pauleto

 Jóe José Dias

Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência. Karl Marx


        Preâmbulo

A mim agradam as trilogias. É que nelas um ciclo se fecha; uma mini epopeia se realiza. Para produzirmos uma narrativa tripla, é preciso, antes de mais nada, planejamento; não basta termos a ideia de fazê-la nem a(s) temática(s) que trabalharemos. É preciso idealizá-la, planejá-la, pois o intervalo entre as obras precisa respeitar não somente a cronologia em que narraremos as ideias e os fatos, mas também o tempo em que abordaremos cada assunto proposto. É bom para a obra; é bom para @(s) leit@r(es).

E por isso é satisfatória a tarefa! Afirmo isso, porque este texto é parte integrante de uma pequena trilogia teórica, iniciada em 28/01/2020 com um texto que muito bem poderia se intitular Para que serve um Bilionário? - ideia de título aliás que não é minha, o que seria um plágio intitulá-lo assim -, e que, por falta de originalidade do autor, ganhou um título mais sisudo e acadêmico. Aliás, foi a partir deste texto que me surgiu a ideia de produzir uma trilogia. Pensei, enquanto o escrevia: já que trabalharei com a desigualdade social no mundo contemporâneo, por que não elaborar uma continuação que almejasse delinear os contornos políticos e ideológicos que, de certa forma, a sustentassem? Nasceu então, em 02/02/2020, A Democracia burguesa e seus limites, onde tento mostrar as ilusões, trapaças e armadilhas da democracia burguesa: para que e quem serve, quais seus propósitos políticos e porque não é uma ferramenta política a serviço da classe trabalhadora.

Este é um texto longo, mas didático. Recheado de exemplos concretos do cotidiano, que visa a mostrar como se desenha o mundo em que vivemos e por que, politicamente, é assim que o temos construído. Porém, isso não bastava! Seria preciso bem mais: mostrar como se constrói o conjunto de discursos que pavimentam as ideias que permeiam todas essas construções. Bem, democracia, por si só, já é uma ideologia. Ao menos como a que temos hoje. E sua construção - como bem se viu no texto - origina-se a partir de um conjunto de ideologias. Contudo, como tal, não se sustentaria se ligadas a ela não viessem associadas conjuntos de outras ideias preestabelecidas e consensuais, tidas como verdades absolutas. É a isso que se propõe este último texto desta curta série: discutir as ideologias: o que são, como são formuladas e reproduzidas e para que(m) servem.

        O que é ideologia?

Para iniciarmos o debate levemos em conta uma ideia concreta: a sociedade como um todo partilha um conjunto de valores ou de ideias que moldam o comportamento humano. Essas ideias, por vez, são fundamentais para que a sociedade funcione. A esse conjunto de valores e ideias dá-se o nome de ideologia. No século XIX Karl Marx observou que o trabalhador assalariado não se percebia enquanto sujeito pertencente a uma classe social (no caso, a classe trabalhadora); este mesmo sujeito não acreditava que a divisão social do trabalho não fosse algo natural. Ou seja, para Marx, os indivíduos creditavam como eternas e naturais as leis regidas pela sociedade, como se não fossem construções humanas. Naturais portanto, como os fenômenos climáticos ou nossas necessidades elementares mais básicas, como comer, beber e dormir, por exemplo.

Essa caracterização da qual o autor vislumbrou claramente no seio da sociedade que vivia, não decorreu, contudo, de uma análise psicológica ou intelectual dos indivíduos que dela participavam. Longe disso! Marx e Engels notaram no funcionamento da sociedade capitalista um conjunto de ideias e valores que agiam no inconsciente coletivo como forma de justificar sua engrenagem e fazer as pessoas aceitarem na sua normalidade, na sua naturalidade. Entenderam que a ideologia era uma fenômeno histórico e social oriunda dos meios de produção vigentes e que, portanto, cada sociedade, a despeito do estágio social em que vivia, partilhava um conjunto de valores sociais que servia (no caso de uma sociedade dividida em classes) aos interesses da classe social que a controlava. Afinal, ao contrário do que escondem as próprias ideologias, as relações sociais são um produto histórico da ação humana e nada têm de naturais.

Dessa forma, quando as revoluções sociais dos séculos XVIII e precedentes - que destronaram a nobreza do poder e puseram uma pedra nas sociedades feudais - deram vida a um ideal político e social burguês, completamente diferente do anterior. Um novo agrupamento de ideias e valores foram necessários para justificar o mundo novo e mais complexo que se descortinava, controlado por uma nova classe social. A burguesia, no caso, necessitava imprimir novas ideias (e até reforçar outras já existentes) para garantir sua sobrevivência no controle do novo modelo de Estado. Uma dessas ideias - também identificadas por Marx e Engels - reforçada pela nova classe insurgente é a da divisão do trabalho intelectual e do trabalho manual: o primeiro como pertencente às elites e o segundo à classe trabalhadora. Essa ideologia é bastante pertinente, pois, além de tornar inquestionável o lugar de cada sujeito na hierarquia social, fazendo com que a classe trabalhadora não questione sobre sua condição e assim continue a ser explorada, justifica o mundo como colocado, eximindo inclusive a classe dominante de torná-lo mais habitável e salubre para as demais classes sociais.

Ora, o que aconteceria, por exemplo, se a classe trabalhadora ignorasse as leis que regem a defesa da propriedade privada e fizessem uma investida contra os latifundiários, os banqueiros e as grandes corporações, esses parasitas da classe trabalhadora, visando a tomar o que é seu de direito? Já pensou se os mendigos e moradores de rua tomassem consciência dos reais motivos que os levaram a essas condições e, unidos com outros setores oprimidos, se organizassem em um grande movimento de desobediência civil contra os valores estabelecidos pela sociedade burguesa e saíssem em luta de seus direitos como seres humanos que são? Ou se os homossexuais  - como defesa - se organizassem para espancar os neonazistas país a fora? Se isso acontecesse, é clarividente que a sociedade como a conhecemos entraria em um verdadeiro colapso e se desmoronaria como uma torre de cartas.

Todavia, por que diabos isso não acontece? Devemos a esse pequeno milagre a força das ideologias. São elas quem fazem com que ideias aparentemente desconexas, como o machismo, o racismo, a homofobia, as condições sociais de cada indivíduo na sociedade, dentre tantas outras, formem uma visão de mundo inquestionável. No seio dessa sociedade cria-se a ideia de que a propriedade privada (tida aqui como forma de exploração) é sagrada, de que os grandes bilionários, empresários e banqueiros, são heróis nacionais, de que as mulheres são inferiores aos homens, assim como as pessoas negras às brancas, de que os pobres assim o são por incompetência intelectual e por falta de esforço individual... e de que nada disso é de responsabilidade da sociedade exploratória em que vivemos. Ou seja, a ideologia impede que a sociedade perceba o vínculo interno entre o poder econômico e o poder político.

Essas ideias - que nada têm de interessante às classes subalternas do sistema capitalista - são reproduzidas quase que naturalmente pelo grosso da sociedade e repetidas exaustivamente pelas mídias sociais, pelas cadeias de rádio e TV e pelas instituições de ensino dos Estados contemporâneos, como as escolas, os institutos técnicos e as universidades. Os trabalhadores, pelo simples fato de viverem em sociedade, absorvem essas ideologias e agem de acordo com elas, mesmo sem perceber. Quando uma ideologia é aceita por todos, ela se torna uma espécie de “linguagem comum”, que todos reconhecem, entendem e reproduzem no seu cotidiano. Em suma, pertence à elite a tarefa de designar as ideologias reinantes, no intuito de que se acredite na unificação de uma sociedade. E essa forjada unificação se dá de diversas maneiras: no compto mais geral e global graças aos valores burgueses de sociedade, tidos como universais e eternos; no âmbito mais particular, dos Estados (nações), por meio da língua, das religiões, na forma como se narram os acontecimentos históricos e do esporte, por exemplo. As ideologias nos tornam inimigos de nós mesmos, fragmentando os explorados e impossibilitando-os de se ver "o todo".

Como resultado, explorados e oprimidos reproduzem valores e hábitos contrários aos seus interesses sociais. Agem em defesa de seus inimigos e contra seus aliados. Essa contradição aparentemente absurda é a responsável, por exemplo, pela divisão entre os trabalhadores, que, invés de se organizarem por melhores condições de vida, gastam suas forças e seus nervos defendendo governos corruptos por puro medo, por ignorância, ou por se sentirem privilegiados dentro de uma sociedade estratificada em classes, na qual reina a barbárie social. Trazendo a discussão para um plano mais concreto e prosaico, citemos alguns exemplos que nos ajudam e compreender a naturalização destas ideias: “O homem é naturalmente egoísta” (ou, na visão do filósofo e matemático absolutista Thomas Hobbes, "o homem é lobo do homem"), "enquanto houver ser humano sempre haverá exploração", "uma pessoa sempre tentará roubar a outra", "as mulheres foram feitas para o trabalho doméstico", "negro não é gente", "árabe é terrorista", dentre outras..., são alguns dos exemplos correntes ainda hoje que reforçam a exploração e dividem a classe trabalhadora, na medida em que naturalizam problemas sociais e dividem a classe em extratos sociais distintos, aparentemente desconexos.

Essa falta de consciência de si enquanto um sujeito social é constantemente estimulada e alimentada pelo Estado e suas instituições e amplamente reforçada pela imprensa oficial (de caráter burguês, pois é por ela financiada e autorizada a realizar suas atividades) e pelas instituições religiosas. Esse conjunto de "falsas ideias" alimenta um discurso "semioficial", que ronda as ideias correntes na sociedade e forma uma opinião pública com pré-conceitos sem lastro na realidade concreta. E são tão repetidos, de todas as maneiras possíveis (vejamos as piadas, por exemplo), que se tornam como verdades inquestionáveis, como o caso - bastante corrente nos dias de hoje - em que um sujeito aceita como positiva a invasão de tropas no Oriente Médio por exércitos imperialistas por crer que os árabes são fanáticos religiosos incapazes de permanecerem em paz consigo mesmos e com o mundo, sendo, portanto, uma ameaça global. Essa reprodução ideológica de um fato tido como inconteste falsifica, portanto, a história, encobre os reais interesses econômicos por detrás dessas chacinas e esconde os verdadeiros saques às riquezas destas nações para a satisfação dos interesses econômicos de um punhado de grandes corporações multinacionais. "A verdade que intenta opor-se não tem apenas o carácter de inverossímil, mas é, além disso, demasiado pobre para entrar em concorrência com o altamente concentrado aparelho da difusão", bem afirmou Adorno (In: Mínima Morália).

        A propaganda ideológica

Já visto como funcionam e a forma como agem na sociedade, basta compreendermos agora como ideias aparentemente desconexas e até absurdas se difundem. É preciso compreender como, independente do extrato social em que vivamos, portamos um conjunto de ideias forjadas que não são necessariamente fruto de nossas reflexões sérias sobre os problemas que nos cercam, mas, como visto, são princípios “plantados” e criados para um fim específico: manter a ordem social estabelecida. Essas conclusões tiraremos assim que compreendermos como funciona a propaganda ideológica.

Ao contrário das propagandas em que se visa a venda de produtos e / ou serviços, a propaganda ideológica não tem um caráter comercial; sua função é bem outra e sua tarefa é bem mais complexa e complicada. Como já salientado, cabe às ideologias fomentar uma série de discursos capazes de convencer um indivíduo a agir contra si e contra os seus próprios interesses. Por isso, inversamente ao discurso marqueteiro da propaganda comercial, no qual visa a estimular nossos sentidos para o consumo de uma determinada mercadoria (na grande maioria das vezes sem necessitarmos dela), como “beba Coca-Cola”, na propaganda ideológica a mensagem deve ser disfarçada, sutil, subliminar. Deve se transmitir o que se deseja, de uma forma encoberta, para que não fiquem claras as verdadeiras intenções do discurso transmitido.

Há poucos dias, o atual ministro da economia do Brasil, o senhor Paulo Guedes, veio a público chamar os funcionários públicos de parasitas. Logo ele, um banqueiro. Ironias e dissimulações à parte, é clara a intenção que tem de fomentar um discurso já corrente entre a população brasileira – e bastante corrente inclusive entre os acadêmicos de cursos como o de administração e economia das universidades brasileiras, por exemplo – de que funcionário público é improdutivo, ineficaz e preguiçoso e de que a tal “máquina pública” é pesada demais para o estado manter. A despeito da vulgaridade das palavras do impalatável ministro, e pela maneira assaz vulgar como foram proferidas, por detrás delas se esconde uma visão burguesa de mundo e de poder neoliberal, na qual recai a ideologia do estado mínimo e das privatizações, que tanto estrago têm feito mundo afora. Essas ideias, de tão difundidas pelas instituições de fomento de ensino e pela imprensa burguesa, adentram na cabeça das pessoas como um câncer, impedindo-as de refletir sobre o tema. É uma resposta fácil, pronta, que atende a uma necessidade primária de resposta a um falso problema, e que esconde, em seu âmago, as reais intenções desse discurso: as de sucatear os serviços públicos com vistas a atender às necessidades de negócios da burguesia, desonerar de responsabilidades o Estado e garantir o saque de nossas riquezas por meio da malfadada dívida pública (link aqui). Eis um exemplo de propaganda ideológica.

Todavia, para melhor compreendermos como bem funciona, tomemos como exemplo a greve dos servidores da saúde do Estado de Santa Catarina, ocorrida não há muito. Assim que foi deflagrada (mesmo até antes) a primeira atuação da mídia foi visando a desconstruí-la. Por meio de artigos e de matérias televisivas, por exemplo, formulou-se discursos cuja intenção não foi a de informar, ou de esclarecer, mas a de enfraquecê-la, jogando os trabalhadores do setor contra o restante da população, fazendo-nos crer que a greve é prejudicial às pessoas que dependem da saúde pública. Assim, toda a formulação ideológica foi construída com este intuito. Nas matérias divulgadas em todos os jornais da região, falou-se portanto da falta que faria às pessoas a ausência de enfermeiros. Entrevistas foram feitas com pessoas idosas ou com mulheres gestantes, pais e mães desesperados com o filho doente, buscando convencer a população dos prejuízos causados pela greve. Em nenhum momento se falou do descaso com a saúde pública no Brasil, com os seguidos cortes que sofre, com o sucateamento, com a política federal de privilegiar os planos de saúde e hospitais e clínicas privados, com a ausência de concursos públicos para o setor, com a carência de unidades médicas - principalmente nas periferias... Nada foi reportado. Sequer buscou-se analisar, em algum momento, a greve sob a perspectiva dos trabalhadores.

Eis a forma de atuação da burguesia. Reside justamente na sutileza dos discursos da propaganda ideológica a sua força. Ela não prega que a mulher é um objeto a serviço do homem e do lar, mas não raras vezes enchem-se os canais com propagandas de cerveja onde desfilam e rebolam mulheres seminuas, ou propagandas de produtos de limpeza, interpretadas por mulheres. Ela não diz “vamos acabar com os direitos trabalhistas”, mas repete, incansavelmente, que nos Estados Unidos, a nação capitalista mais poderosa do planeta, eles praticamente inexistem. Não se falou, nas matérias contra a greve, que os trabalhadores eram vagabundos e parasitas, insensíveis que não se preocupavam com a vida alheia. Essas conclusões quem as tiraram foram as pessoas, a classe trabalhadora. Como se sabe, a melhor forma de plantar uma ideia na cabeça de alguém é fazer a pessoa acreditar que chegou sozinha a essa conclusão. Por isso, o fato de uma pessoa ter uma opinião formada sobre um determinado assunto não significa, de modo algum, que essa ideia seja dela. Noventa e nove porcento das ideias que temos prontas foram sutilmente plantadas pela burguesia através da educação, da imprensa, da família, da TV, do cinema, da igreja etc. A força das ideologias reside justamente no fato de que os explorados defendem e reproduzem as ideias dos exploradores, achando que essas ideias são suas.

        A perspectiva operária de mundo

Descortinadas as qualidades da perspectiva de mundo burguesa, bem como suas formas de propalação entre a classe a trabalhadora, é possível afirmar que essa ideologia é invencível? Como toda construção humana, a resposta para esta questão deve ser enfática: não! É bem verdade que é poderosa e que auxilia na manutenção da ordem do mundo capitalista, sendo inclusive a grande responsável pela consumação da exploração. Porém, como é ela mesma um conjunto de falsas ideias cujo intuito é justificar um mundo como pronto e acabado, no qual cada um ocupa o lugar que lhe é devido e de direito, seu alcance limita-se até o ponto em que seus ideais não se chocam com o mundo a sua volta. A prática é o critério da verdade, afirmou Lenin. E à medida que a classe trabalhadora experiencia o mundo a sua volta, sentindo (mais que notando) suas contradições e sentindo na pele mais e mais o peso da exploração crescente sobre os seus ombros, pouco a pouco fica difícil de mantê-lo de pé, este conjunto de ideias.

Uma revolução nasce do acúmulo de contradições não resolvidas. E várias aconteceram no último período, apesar de terem sido derrotadas. É que as organizações políticas com tradição entre a classe operária mundial, ou são francamente reformistas, com um programa burguês de mundo com chavões pseudo-marxistas, ou então são stalinistas, com um programa de poder que não se choca com os limites estabelecidos pela democracia burguesa. Pelo contrário! As pequenas organizações operárias, pelas suas fragilidades, não conseguiram ainda transpor as barreiras políticas a elas impostas, impendindo assim seu crescimento e influência entre as massas.  Assim, se é verdade, como bem definiu Trotsky, que a crise da humanidade reduz-se à crise de direção revolucionária, e que esta parece estar longe de se reconstruir após a sua derrocada quase total pelo stalinismo, é concomitantemente verossímil que a ferramenta teórica para derrotar a ideologia de mundo burguesa existe e está bem viva, tem nome e sobrenome: o socialismo científico.

Formulado pelos filósofos alemães Friedrich Engels e Karl Marx, em meados do século XIX, é o socialismo científico a ideologia da classe operária, a ciência da sua libertação. Conhecida como “marxismo” é o conjunto de ideias que interpretam corretamente o mundo à nossa volta, que revelam as verdadeiras razões da opressão, da desigualdade e da exploração. Todavia, contrariamente às ideologias burguesas, não é uma visão fechada em si, que traz uma imagem de mundo simplista, estereotipada, preconceituosa, que penetra na mente dos trabalhadores por milhares de meios invisíveis e imperceptíveis. Não é um composto pronto e acabado. O marxismo não é apresentado diariamente em programas de televisão (a não ser para ser desmoralizado, falsificado), tampouco ensinado nas escolas. O marxismo é uma ciência, bastante complexa por sinal, e que, como tal, precisa ser estudada, descoberta.

O operário consciente que deseje entender a fundo o mundo ao seu redor deve começar por desconfiar de todas as ideias que pareçam óbvias e naturais porque a maior parte delas não passa, muito provavelmente, de mentiras bem contadas (às vezes nem isso!). Em seguida, deve ter, em relação à sociedade, uma curiosidade infantil; deve querer descortiná-la, interpretá-la, desvendá-la, destrinchá-la e dominá-la, por fim. Tendo dominado o marxismo, esse operário interpretará os fatos da realidade com a mesma facilidade que um eletricista experiente interpreta um sistema elétrico complexo. Somente a partir deste momento é que a teoria, em suas mãos, se tornará uma arma de ação implacável, capaz de movimentá-lo e guiá-lo na luta contra a exploração cotidiana dele e de toda a classe trabalhadora. Esse trabalhador se juntará então a uma pequena vanguarda operária incansável na luta por uma sociedade mais justa e igualitária, o socialismo.

        De Os Flintstones a Os Jetsons

Certa feita, escutei de um amigo querido uma frase que me deixou com uma pulguinha atrás da orelha. Conversávamos - não sei bem porquê - sobre animações. Até que chegamos, lá pelas tantas, a um um episódio em que uniam dois dos desenhos animados mais famosos de nossa época, intitulado The Jetsons Meet The Flintstones, filme que foi relativamente bem assistido a seu tempo. Ele afirmou: as ideologias dominantes são tão presentes no mundo em que vivemos, que tanto Fred e Vilma, quanto Jane e George vivem em mundos praticamente idênticos.

Não sou um expert em animações. De nenhuma espécie. Pelo contrário! Embora gostasse de muitos desenhos animados e os consumia a rodo na minha infância, não era - nem sou - um grande conhecedor deles. Mas quem, da minha geração, não conhece Os Flintstones? Quem não se interessaria, quando criança dos anos 80 e 90, em assistir ao encontro entre as duas famílias, uma da pré-história e outra do futuro? Hanna-Barbera e DC uniram as famílias Flintstone e Jetson em uma única animação. E isso soou a ORIGINAL para nós.

Todavia, como sei que muitos jovens talvez não saibam ao certo o que falamos, faremos um pequeno resumo: Os Jetsons são uma série de animação desenhada por Hanna-Barbera e levada ao ar no início dos anos 60. Teve apenas 24 episódios até que foi relançada 20 anos mais tarde, a cores. Trata-se de uma família de classe média pequeno-burguesa, composta por um casal, George (40 anos) e Jane (33), ambos brancos. O casal tem dois filhos, a Judy (15 anos) e o Elroy (6 1/2 anos). No núcleo familiar, temos ainda o cão Astro e a empregada doméstica robô, Rosie.


A narrativa se passa em 2064 e mostra uma visão bastante otimista do mundo capitalista, distinta da que vemos hoje. Carros voadores, eletrodomésticos e eletrônicos independentes e robôs intercalam-se com uma vida fácil, tranquila e farta. O estereótipo burguês de mundo quase perfeito aquele em que os Jetsons viviam. O ideal resplandecente de um mundo onde todos vivem em uma sociedade colorida, igualitária e repleta de oportunidades, de portas abertas para aqueles que queiram viver o “sonho americano”. Os próprios Jetsons são uma família mediana e bem-sucedida, administrada pelo pai, que é o provedor da prole. Um ideal cristão-burguês idealizado no senso comum e bastante forte ainda hoje entre os estadunidenses de classe média.

Já Os Flintstones vivem em um ambiente parecido do ponto de vista social, embora sejam tipificados como de origem operária. A família reside em uma casa modesta, porém digna, em Bedrock, uma cidade de 2.500 habitantes, no ano de 1.040.000 a.C. (um milhão e quarenta mil antes de Cristo). Fred Flintstone trabalha como operador de dinossauro da Slaterock Gravel Company. É casado com Vilma e pai de Pedrita, além de terem um dinocão, o Dino. Nas horas vagas joga boliche e frequenta um clube, ou uma confraria. Seu prato principal é Brontoburguer com Cactus-Cola e também Costelas de Brontossauro. Vilma, exímia “dona de casa”, gostaria muito de trabalhar fora, mas Fred e seu machismo freiam sua vontade. O casal tem uma dupla de amigos inseparáveis, os carinhosos Betty e Barney Rubble e seu filho adotivo Bambam.


A série é repleta de estereótipos. Primeiro o próprio Fred, descrito como um sujeito complacente, bonachão e desprovido de grandes inteligências. Barney, o amigo, não é diferente, embora seja mais sincero e carinhoso com os próximos. Já suas esposas, ambas, cuidam dos serviços domésticos e são sustentadas financeiramente pelos cônjuges, a exemplo da família Jetson.

O ambiente familiar, embora da classe operária, carrega valores burgueses. A cidade, as lojas, a vida cotidiana, os desejos... tudo é característico de uma sociedade regida por esses valores. As ideologias que movimentam a vida dos Flintstones são exatamente as mesmas que regem a sociedade em que vivem os Jetsons, 1.042.064 anos depois, incluindo aí os núcleos familiares: pessoas brancas e com filhos. E, embora Vilma e Betty sejam as responsáveis pelos serviços domésticos em seus lares - ao contrário de Jane, que não precisa fazê-lo, pois tem quem o faça -, a sociedade é basicamente mesma.

A diferença entre os Jetsons e os Flintstones são nada mais que social: enquanto aquela família representa o estereótipo pequeno-burguês de família, esta é tipicamente operária. E o lugar delimitado para cada uma delas é também o socialmente aceito pela burguesia e seu ideal de mundo. Em seu “sonho americano” de sociedade, a classe burguesa também delimita os espaços que cada classe deve ocupar.

Assim, se temos famílias de humanos vivendo em sociedades idênticas, com características sociais muito similares (a despeito do tempo transcorrido entre ambas), vivendo em Estados com classes bem definidas e bem estereotipadas, em que cada qual não questiona o seu lugar no mundo, fala a mesma língua e porta praticamente os mesmos valores sociais, é graças a características ideológicas e de classe que colocam os ideais burgueses como superiores e eternos. Afinal, como diria Marx: “As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante”. Ou seja, é o mundo burguês se redesenhando, buscando, a partir de um conjunto de "falsas ideias", criar um inconsciente coletivo como verdadeiro.

Tanto que, após Elroy ter jogado os Jetsons no passado, deparando-se face to face com os Flintstones, em plena Bedrock pré-histórica, não tivemos basicamente conflitos. Houve sim vários estranhamentos, mas todos provocados por questões de época, como as diferenças tecnológicas, ou francamente por distinções de valores característicos de cada classe. Em nenhum momento - nem quando os Flintstones vão ao futuro - se questionam os valores sociais, tidos como universais e imutáveis, pois ambos vivem sob a mesma égide social. O poder das ideologias, criando um inconsciente coletivo e alterando valores históricos para forjar um mundo onde não haja história fora dos limites burgueses, onde não haja vida possível fora do capitalismo. Eis também o papel das ideologias!

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Faz parte desta trilogia:
  1. O mundo "nas mãos" de poucos: a pobreza escancarada em um capitalismo cada vez mais decadente;
  2. A Democracia burguesa e seus limites.

Plus-Ultra:

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