Por Nildo Ouriques
Desde Buenos Aires, Atílio Borón faz um chamado a seus amigos e
companheiros no Brasil e os convoca a assumir o voto em Dilma Rousseff
nas eleições de domingo. Estou entre os amigos de Atílio, com quem tenho
antiga colaboração e amizade, razão pela qual me animo a responder sua
valiosa reflexão.
A Europa pode ser nosso espelho?
Creio desnecessária a valorização de Atílio sobre a conjuntura
europeia, especialmente aquela relativa a Alemanha dos anos 30. A razão é
simples: ainda que para efeito de ilustração é sempre útil pintar toda
escolha como se estivéssemos realmente inseridos na lógica de uma
situação extrema, a conjuntura brasileira em nada se assemelha com a
época prévia à ascensão do nazismo e o contexto da grande crise de 1929.
Nem mesmo o mais pessimista analista poderia afirmar que estamos
próximos daquela situação.
No entanto, tem sido recorrente recordar o conflito entre os
comunistas e a socialdemocracia europeia, como se o cenário europeu da
década de 30 do século passado fosse um espelho adequado para observar
nossas escolhas presentes. De minha parte, creio que nos últimos anos o
uso de expressões como “fascista” ou “nazista” foi completamente
vulgarizado entre nós. Há dois dias Lula afirmou que a discriminação
sobre os nordestinos era expressão do “nazismo”. Nada mais impreciso e
falso. "De vez em quando parece que estão agredindo a gente como os
nazistas na Segunda Guerra Mundial", disse Lula, em Recife. Ora, a
comparação é completamente descabida! A discriminação contra os
nordestinos é expressão do tradicional – nem por isso menos odioso! –
racismo que constitui um pilar do desenvolvimento capitalista no Brasil.
O mesmo racismo destilado cotidianamente contra a maior parte da
população negra e os povos originários. Contudo, ainda estamos muito
longe de uma onda nazi no Brasil. Comparação não somente indevida feita
pelo ex-presidente, mas, sobretudo falsa, que termina por despolitizar a
questão racial entre nós.
Avanço conservador não é fascismo
Mas nosso debate é sobre a conjuntura atual. Vamos ao ponto central
da caracterização de Atílio sobre a situação brasileira; ele afirma que
seria “um gesto de imprudência que a esquerda não perceba o crescente
processo de fascistização de amplos setores das camadas médias e o clima
macartista que satura diversos ambientes sociais”. De fato, seria grave
erro subestimar o potencial fascista existente na sociedade brasileira.
Também seria uma conduta irresponsável ignorar que eventual vitória de
Aécio poderia até mesmo fortalecer esta tendência na ação do governo e
em certas decisões do Estado.
No entanto, creio necessário afirmar que numa democracia restringida
como a que sofremos, num país capitalista dependente e subdesenvolvido
como de fato somos, sempre será muito importante reconhecer como parte
do jogo liberal a emergência de forças identificadas com o fascismo, o
racismo e, desde nossa singularidade, com a ditadura militar
(1964-1985). Mas é preciso insistir no fato de que a emergência desta tendência é minoritária
no país e impossível eliminá-la. Enfim, é parte constitutiva da
democracia liberal a presença de forças de direita mais ou menos
afinadas com práticas fascistas ou com o discurso fascista (nos termos
da perspectiva eurocêntrica tradicional: Le Pen na França é uma forma
declaradamente fascista e Berlusconi também, mas nem por isso alguém
poderia afirmar que a Itália e a França estão ameaçadas pelo fascismo).
Não devemos desconhecer a diferença histórica qualitativa
entre Dilma e Aécio. Fazê-lo seria ignorar a importância da História,
pois enquanto Dilma lutou bravamente contra a ditadura, amargou prisão e
tortura, Aécio nunca passou de um bon vivant que foi logo cedo
adotado pela classe dominante para servir aos seus interesses. Ademais,
Aécio é discípulo devoto de FHC (algo que não ocorria com Serra nas
hostes do PSDB) no estilo do discurso, na adoção da estratégia política,
na identidade com os interesses imperialistas, especialmente com o
Partido Democrata nos Estados Unidos.
Aécio mesmo não é fascista, mas é claro que, na condição de político
vulgar que de fato é, poderia – caso estivéssemos numa situação extrema –
assumir um programa desta natureza. Neste contexto, é claro que precisamente
em função dos antecedentes históricos, muita gente desejou ou esperava
que Dilma assumiria claros compromissos com o povo, da mesma forma que
muitos de nós ainda não aceitamos a renúncia da presidente pela
elucidação completa e definitiva dos crimes cometidos pela ditadura,
menos compreensível quando ela própria foi vítima daquelas atrocidades,
para dar apenas um exemplo entre muitos possíveis.
Contudo, se é um erro eliminar as diferenças entre os candidatos no
passado, é também grave erro ignorá-los no presente. Há, tal como indica
Atílio Borón, um constante avanço conservador na sociedade
brasileira e se trata de um movimento que não é necessariamente contra o
PT e Dilma; ao contrário, é possível afirmar categoricamente que parte
considerável do conservadorismo crescente no país é um ingrediente da
própria estratégia do PT e das alianças realizadas pela candidatura de
Dilma.
A propósito, o resultado do processo eleitoral é claro: a bancada
parlamentar identificada com os trabalhadores e com os sindicalistas
reduziu sua representação de 83 para 47 deputados! É o pior resultado
desde 2002, quando Lula se elegeu para presidente. Do lado oposto, a
bancada que integra a Frente Parlamentar da Agroindústria conta com 253
assinaturas, praticamente a metade do congresso nacional.
Enfim, é fácil perceber que importantes parlamentares afinados com
interesses ultraconservadores sustentam o governo Dilma, entre os quais
merece destaque a senadora Kátia Abreu, ex-presidente da poderosa
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Apoiou Dilma e
recebeu apoio da presidente para eleger-se senadora por seu estado,
Tocantins. Não é, obviamente, o único exemplo, mas ninguém poderá
desprezar este dado na análise da situação concreta brasileira: ilustres
representantes do pensamento conservador e mesmo reacionário estão com
Dilma (José Sarney, Collor de Melo etc.).
A miséria do ecologismo e a digestão moral da pobreza
Atílio nos pergunta a razão pela qual Aécio adotou sem titubeios a
agenda ecológica e social proposta por Marina? Não creio que se trata
apenas de “manobra propagandista” – ainda que também tenha algo disso –
mas substancialmente porque o ecologismo brasileiro jamais enfrentou a
relação perversa entre homem-natureza sob as condições do capitalismo
dependente. O ecologismo dominante aqui sempre foi funcional à ordem
burguesa! A opção de Marina (ex-ministra de Lula) e outros conhecidos
ambientalistas pela candidatura de Aécio revela antes de tudo a pobreza e
a miséria do ecologismo como corrente política no país e, ao mesmo
tempo, a capacidade destes políticos em aceitar os crimes ecológicos
produzidos pela modalidade de desenvolvimentismo em curso, certamente
ainda mais agressivo na eventualidade de um governo tucano. Não devemos
jamais esquecer que Marina foi especialista na defesa do
“desenvolvimento sustentável”, o caminho simpático para a acumulação de
capital que destrói violentamente a natureza com algum charme para os
ambientalistas franceses e as organizações não governamentais (ONGs).
Por que, afinal, Aécio adotou os programas sociais defendidos por
Dilma e exigidos por Marina? Porque além de baratos – consomem um
percentual muito pequeno do orçamento federal – é decisivo para estes
setores aprofundar a digestão moral da pobreza em curso no
Brasil. Ora, o tucano Aécio jamais ousou afirmar durante toda a campanha
que a “ascensão” de milhões de brasileiros à condição de classe média
está limitada àqueles trabalhadores que recebem entre R$ 641 e R$ 1019
reais, quando o salário mínimo calculado pelo DIEESE deveria ser R$
3.019 reais! Tampouco ousa contestar que os 100% de royalties para
educação e saúde, peça da campanha oficial, não alcançam sequer 2% de
toda a riqueza extraída do Pré-sal. Estes dois exemplos são importantes
para observar como na prática estamos governados por um “consórcio
petucano”, no qual as divergências ou são alimentadas no terreno
confortável do parlamento ou quando tocam em temas estratégicos, são
simplesmente ocultadas pelos dois grandes partidos.
A reforma política: decisivo passo do avanço conservador
Finalmente, algo sobre nosso sistema político. A precoce adesão do PT
à ordem burguesa não cancelou apenas longos anos de trabalho e esforço
político da esquerda para dotar as classes subalternas de um instrumento
de luta. Na exata medida em que o PT se transformou em um partido da ordem,
o sistema político perdeu sua capacidade de figurar como caminho de
transformação para os interesses das maiorias. Em consequência, o
sistema político é democrático e adequado para a dominação classista,
mas é incapaz de mudar as regras do jogo em favor de outra correlação de
forças, mais favorável ao combate dos "de baixo".
Eis a razão fundamental pela qual a burguesia descarta, nas atuais
circunstâncias, qualquer estratégia golpista e pode – como o fez até
agora – governar com Dilma. Uma alternativa golpista de corte fascista
somente se transforma numa necessidades histórica diante do avanço das
classes subalternas, da elevação de seu grau de consciência e
organização, capaz de tocar na propriedade, no poder político e no
privilégio das classes dominantes. Ora, precisamente Dilma comanda o
pacto de classe herdado de 1994 – o Plano Real – com mais maestria que
FHC ou Aécio.
Afinal, a burguesia pode ou não contar com uma forma de dominação
democrática na periferia capitalista? Eu estou de acordo que eventual
vitória de Aécio representa a restauração conservadora que
Atílio indica. É verdade. Mas é igualmente verdadeiro que a “restauração
conservadora” não se assemelha a qualquer onda fascista! Aécio deixou
claro que teria “tolerância zero” com a inflação. Ataca, desde o
espectro da direita, o “neodesenvolvimentismo atravessado por profundas
contradições” do PT e de Dilma.
Caso eleito, Aécio praticaria a política da ortodoxia neoliberal que
já enfrentamos durante os 8 anos de FHC. Algo muito distinto de uma onda
fascista. E Dilma continuará, caso eleita, com a política atual que até
mesmo alguns keynesianos consideram de escassa inspiração
neodesenvolvimentista. Enfim, os interesses das distintas frações do
capital estão inteiramente contemplados no atual governo, com a vantagem
de que os pobres pouco "incomodam", em função da política social.
O que leva muitos de nós ao voto nulo? Algo decisivo. Nos últimos 12 anos, em nenhuma oportunidade Lula ou Dilma convocaram o povo para alguma batalha.
Qualquer batalha. Dilma nos convoca tão somente para o voto. Jamais
para a luta! Agora, flertam com uma "reforma política" que se
transformará numa plataforma do conservadorismo ascendente comandada
pela presidente reeleita. Poderá emergir uma reforma progressista de um
congresso cada dia mais conservador? Nenhuma possibilidade! Será, sem
dúvida, um simulacro de reforma, destinado a afastar ainda mais o povo
das decisões estratégicas e dotar os grandes partidos de imunidade,
diante de eventual pressão popular.
Neste contexto, é completamente falso supor que Dilma poderia
reconectar o PT com os movimentos sociais ou reativar antigo compromisso
com os condenados da terra no Brasil. Depois de cada vitória, os
presidentes eleitos pelo PT centram sua atenção no Congresso Nacional,
na prática parlamentar e, de costas para o povo, governam em santa
comunhão com as classes dominantes. No limite, indicam para a esquerda
marginal e para os movimentos sociais, que “ruim conosco, pior sem nós”.
Com a operação, garantem recursos suculentos para as classes
dominantes enquanto destinam migalhas para as classes subalternas. Devo
dizer com clareza: os programas sociais atualmente praticados são
importantes para um país atravessado pela desigualdade, mas é igualmente
verdadeiro que também são úteis para a estabilidade burguesa porque são
baratos, mantêm os pobres na pobreza e não avançam em sua organização
política e consciência de classe!
A opção pelo voto nulo de milhares de militantes socialistas não
supõe que o caminho de reconstrução da esquerda radical seria mais fácil
numa eventual vitória de Aécio. Tampouco será melhor com a reeleição
de Dilma. A esquerda socialista sai desta eleição acumulando grande
derrota eleitoral. Mas creio que aprendeu – ou deveria aprender
– que figurar como "espírito crítico" do petismo atual, como se sua
função histórica se limitasse a concluir um trabalho que o PT abandonou
no meio do caminho, é um horizonte limitado diante dos dilemas
históricos do país.
Tampouco cabe à esquerda servir como espécie de "terceira via" entre
os dois principais partidos dominantes. Trata-se de um dilema superado
historicamente. A esquerda necessita afirmar-se contra a agenda do
petucanismo no terreno parlamentar (a "reforma política"), na elaboração
de nova práxis nas organizações sociais – especialmente os sindicatos –
e de uma certeza elementar: o sistema político no qual ela figura,
agora como nanica ou marginal, não poderá transformar a vida da maioria
da população brasileira e muito menos operar no sentido de superar as
misérias típicas do subdesenvolvimento e da dependência.
*Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e membro do Núcleo de Estudos Latino-Americanos.
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*Texto originalmente publicado no Correio da Cidadania - autorizada a reprodução pelo autor. Essa é uma contribuição de Nildo Ouriques ao debate, e não necessariamente expressa a opinião do PSTU.
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