Não há água no fim do cano
Jeferson Choma, da Redação
Sem solução a curto prazo para a crise hídrica, metade da água que abastece São Paulo poderá acabar até o meio do ano
Pela primeira vez, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB)
foi obrigado a admitir que o estado enfrenta um racionamento de água. A
declaração foi dada no dia 14 e foi uma resposta à decisão judicial que
suspende a cobrança de multa para quem consumir mais água. No dia
seguinte, porém, o governador voltou atrás e negou que exista
racionamento. A confusa declaração do governador expressa a crise no
interior do governo frente à crescente insatisfação da população com a
falta de água que castiga São Paulo.
Desde o ano passado, quando a crise começou, a falta de água se
tornou uma rotina. Nos últimos dias, com o aumento do consumo, o corte
de água se ampliou em toda a cidade. Na prática, o governo tucano impôs
um racionamento da água que tem um evidente corte de classe. Em bairros e
regiões mais pobres, o racionamento acontece há meses. Neles, falta
água dia sim, dia não, ou mesmo por dois ou três dias consecutivo.
Ao impor esse racionamento informal, a Sabesp (Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo) e o governo tucano aumentam os
riscos de contaminação da água consumida pela população. Isso porque a
alta pressão da água garante que nada entre na tubulação, mas com a sua
diminuição, ela pode sair, ficar contaminada e retornar à tubulação.
Cantareira vai secar?
A situação tende a se agravar. No sistema Cantareira, a água continua
diminuindo. No dia 21 de janeiro, chegou a 5,5% da sua capacidade total,
isso somando o “volume morto”, chamado pelos tucanos de “reserva
técnica”. O consumo de água aumentou com o calor do verão, enquanto nos
últimos quatro meses no Sistema Cantareira a chuva registrada está
abaixo da média histórica. Até o dia 20 de janeiro choveu apenas 60,9
milímetros desde o início do mês, o equivalente a 22,5% da média
histórica para o mês. Em outubro, novembro e dezembro choveu apenas 60%
da média histórica. Vale lembrar que já passamos por mais da metade do
período de maior incidência de chuvas (de novembro até março) e que, a
partir de maio e junho, começa a estação de estiagem.
Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres
Naturais (Cemaden), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, as
represas da Cantareira poderão secar em junho, caso as chuvas na região
do sistema continuem 50% abaixo da média e a captação se mantenha nos
níveis atuais. O Sistema Cantareira é responsável por 50% da água
consumida na grande São Paulo. Ou seja, metade da água da maior cidade
da América do Sul pode simplesmente acabar. Se esse prognóstico se
confirmar, é possível imaginar a dimensão da tragédia social que irá se
abater sobre a cidade.
Neste momento, o governo tucano pretende reduzir a área de influência
do Cantareira e sobrecarregar os demais sistemas. Contudo, nenhum deles
tem condições de suprir a metrópole por muito tempo.
Razões para a crise hídrica
Muitos
tem responsabilizado a natureza pela atual crise hídrica. Alguns evocam
até mesmo o “aquecimento global” ou o desmatamento na Amazônia para
justificar a diminuição das chuvas na Região Sudeste. No entanto, tais
argumentos são no mínimo precipitados do ponto de vista científico.
A
ciência climatológica necessita de tempo para recolher e avaliar
inúmeros dados meteorológicos. Isso por que o clima é a caraterização de
um período suficientemente longo no tempo do meio ambiente atmosférico,
geralmente de 30 anos, de uma determinada localidade, região, etc.
Apontar
o aquecimento global, o desmatamento da Amazônia ou mesmo a variação da
temperatura do oceano Pacífico (conhecida como Oscilação Decanal do
Pacífico e que tem influência climática no Brasil) é válido como uma
hipótese científica, mas que necessita ser confirmada ou não em estudos
de longo prazo.
Isso não significa, porém, negar a existência de qualquer componente
natural na atual crise hídrica. Desde maio de 2011, ao analisar os
gráficos sobre o nível do Sistema Cantareira, é possível perceber uma
trajetória descendente dos seus reservatórios. Na época, o sistema
contava com 92% da sua capacidade. Desde então, nos anos subsequentes
nem mesmo o período de maior precipitação (dezembro, janeiro, fevereiro,
março e abril) foi suficiente para recarregar os reservatórios do
sistema ao patamar anterior. Em 2012, um relatório da Sabesp para seus
investidores já apontava para riscos de desabastecimento na capital
paulista. Em maio de 2013, os níveis dos reservatórios iniciam uma
trajetória de queda o que levará a crise atual. Que providências o
governo Alckmin tomou diante do esgotamento do Cantareira? Absolutamente
nenhuma.
Privatização da água
Essa não é a primeira crise enfrentada pelo Sistema Cantareira, nem
pelo governo tucano. Em dezembro de 2003, a Cantareira vivia uma
situação crítica quando os reservatórios do sistema contavam com apenas
2% de sua capacidade (sem contar com o volume morto). Alckmin já era
governador de São Paulo e a crise hídrica só não foi maior porque choveu
muito nos meses que seguiram.
De lá pra cá, o governo nada fez para evitar uma nova crise de
abastecimento. Isso porque, desde 2002, a Sabesp passou a priorizar a
obtenção de lucro, e deixou de enxergar a água como um bem público para
transformá-la em mercadoria.
A gradual privatização da Sabesp, realizada nos últimos anos, a
tornou uma empresa de capital misto, sendo que o governo estadual detém
51% das suas ações. Os outros 49% estão divididos entre acionistas
brasileiros e estrangeiros, que visam apenas o lucro. Entre 2003 e 2013,
foram distribuídos R$ 4,372 bilhões em dividendos para os acionistas
privados da Sabesp. Os lucros da Sabesp no mesmo período atingiram R$
13,13 bilhões.
Com esse valor, seria possível construir seis vezes o Sistema de Água
São Lourenço, orçado em R$ 2,21 bilhões. Há anos esse sistema é o
principal projeto da Sabesp para aumentar a oferta de água na Grande São
Paulo e diminuir a dependência do Sistema Cantareira. Mas as obras para
sua construção tiveram início somente em 10 de abril de 2014, com
previsão de término em cinco anos.
Nem mesmo a redução do fornecimento de água tem provocado queda
significativa nos lucros da Sabesp. No segundo trimestre de 2014, o
lucro líquido da empresa passou de R$ 361,7 milhões para R$ 302,4
milhões.
Com a privatização parcial da Sabesp, mudaram também suas diretrizes
estratégicas. A base para proporcionar lucratividade aos seus
acionistas foi o aumento do volume de água vendida, ignorando se havia
ou não água suficiente para atender a crescente demanda. Ou seja,
enquanto a água dos reservatórios se esgotava a empresa continuava a
alavancar a “venda” de água. Por essa razão a Sabesp não adotou nenhuma
política de gestão de demanda, isto é, ações preventivas de redução de
consumo. Uma excelente reportagem da Agencia Pública revelou como contratos entre empresários e a Sabesp estimulavam um maior consumo de agua.
Como se pode ver, não faltaram avisos sobre a possibilidade da crise
hídrica. Faltou sim investimentos que não foram realizados para não
diminuir os lucros dos acionistas privados da Sabesp. Investir em
reservatório e mananciais é caro e o retorno é de longo prazo. Portanto,
tornam menos atrativas ações no mercado financeiro. Para o capital o
retorno precisa ser imediato.
Recuperação dos mananciais
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada no dia 19 de
janeiro, Newsha Ajami, diretora de programa de água no oeste dos EUA,
disse que sabia da seca em São Paulo e ficou surpresa “ao descobrir que
há um rio (o Tietê) no meio da cidade”. Ela disse que ficou
impressionada que ninguém tenha pensando em descontaminar a água do rio e
utilizá-la. Muitos outros especialistas estrangeiros também ficam
surpresos ao saber que em São Paulo, mesmo com dois grandes corpos
d´água (as represas do Guarapiranga e a Billings), enfrenta uma crise
hídrica.
A surpresa dos especialistas é a expressão do contraditório processo
de urbanização de São Paulo. No último século, o crescimento da
metrópole se deu sob a ocupação das várzeas dos rios que deram lugar a
avenidas, ruas e edifícios. Em parte, isso explica porque a cidade sofre
com as enchentes durante o verão.
O Tietê, maior rio da cidade, até os anos 1940 era um espaço de lazer
e práticas esportivas dos paulistanos. Hoje não passa de um canal morto
pela poluição industrial e esgotos domésticos. O resultado é que suas
águas não servem mais para o consumo humano, exceto nas regiões próximas
de sua nascente. Já o rio Pinheiros passou pela mesma situação. Até os
anos 80, visando à produção de energia elétrica, o rio teve seu curso
natural (que seguia para o Tietê) revertido. A ação foi desastrosa, pois
significou a contaminação do reservatório da represa Billings pelas
águas e sedimentos do já poluído Tietê. Hoje, apenas as águas de uma
pequena parte da represa podem ser utilizadas para consumo humano.
Investir na recuperação das águas das represas Biligns e Guarapiranga
que juntas poderiam resolver a crise de oferta d’água em São Paulo,
significa enfrentar muitos outros problemas da metrópole. Um deles é a
questão da moradia. Ao longo de décadas, a especulação imobiliária levou
a população mais pobre a ocupar as áreas próximas desses mananciais.
Para recuperá-las, portanto, seria necessário criar um amplo programa
público de habitação voltado à população mais pobre. Algo que está muito
longe do horizonte dos governos do PSDB e do prefeito Haddad (PT).
A descontaminação do Tietê também exigiria profundas medidas,
especialmente de caráter social. Não é possível descontaminar um rio sem
pensar na recuperação de seus afluentes (Pinheiros, Tamanduateí,
Aricanduva, etc.) que cortam o coração da metrópole. Para isso seria
necessário realizar grandes obras públicas, criar programas públicos de
moradia, investir pesado em transporte público para diminuir a
circulação de automóveis, além de transferir eixos e avenidas. Em suma,
será preciso rever todo o processo de ocupação urbana da cidade.
Outro absurdo é a perda de até 40% da água tratada no processo de
distribuição. São vazamentos e problemas de infraestrutura que não são
resolvidos pela Sabesp porque isso reduziria o lucro de seus acionistas.
A curto prazo não há solução para a crise hídrica de São Paulo. O
sistema São Lourenço, a mais importante iniciativa para solucionar o
problema de abastecimento, só ficará pronto em cinco anos. No entanto, é
bom lembrar que a obra está sendo realizada sob o regime de Parceria
Público-Privada, e mais de 80% do seu custo será bancado pelo dinheiro
público (R$ 1,8 bilhões do BNDES e da Sabesp), mas quem vai gerir é o
capital privado, que não entra com recurso algum. Além disso, sabemos
que obras como essa estão mais do que sujeiras a escândalos de
corrupção, atrasos e superfaturamento.
Mas o aprofundamento da crise poderá desatar manifestações por falta
de água, especialmente na periferia e nos bairros mais pobres. Cabe ao
movimento popular-sindical se preparar para organizar essa luta.
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Texto originalmente publicado em: PSTU Nacional.
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