Syriza, Podemos e a esquerda reformista


Wagner Miquéias F. Damasceno

Com o intuito de acalmar seus investidores, o Bank of America Merrill Lynch enviou um comunicado onde compara o primeiro-ministro do Syriza, Alexis Tsipras, com Luis Inácio “Lula” da Silva, do PT.

Vejamos o ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, um ex-líder sindicalista de esquerda que demonstrou que o medo dos mercados (em relação a sua ascensão ao poder) era infundado, e agora lhe dão crédito pela impressionante trajetória econômica do Brasil. Embora o ambiente externo da Grécia seja mais complicado, o caso de Lula prova que Tsipras poderia surpreender positivamente de forma semelhante os mercados, acelerando reformas estruturantes” (PORTAL FÓRUM, 2015).1

Para o Banco Merril Lynch, Alexis Tsipras do Syriza pode surpreender positivamente o Mercado, como fez Lula do PT, que chegou a declarar que nunca os bancos lucraram tanto quanto em seu governo – o que é verdade. Por seu turno, Luciana Genro compara o Syriza ao PSOL, pois almeja tornar-se um Tsipras. Mas, o que significa a vitória eleitoral do Syriza?

A vitória do Syriza, nas eleições de 2015, sobre os partidos tradicionais significa uma vitória política para o povo trabalhador grego. “O voto de milhões de gregos em Syriza foi, fundamentalmente, uma forma de castigar os partidos e líderes que, a serviço da troika e do capital financeiro alemão, destruíram o país durante os últimos seis anos” (LIT-QI, 2015).

O voto no Syriza expressou, principalmente, uma rejeição à calamitosa destruição econômica do país. Foi uma forma de dizer basta ao dramático desemprego, à pobreza, ao desmantelamento dos serviços públicos e a um endividamento colossal com credores estrangeiros, cujo pagamento não é senão um saque desenfreado dos recursos nacionais (SUGASTI, 2011).

O desejo de mudança expressado pelo povo grego ao votar no Syriza é poderoso. No entanto, é importante destacar que 3,5 milhões de pessoas não foram às urnas na Grécia, o que representa 36,13% de abstenções2; um percentual bastante expressivo e, até mesmo, superior ao número de votos depositados no Syriza.

Saudar a vitória do Syriza – expressão eleitoral de um desejo de mudanças do povo grego contra a troika – não significa que devamos recolher as críticas, muito menos fomentar ilusões a partir de simbolismos e ambiguidades programáticas, como parte da esquerda reformista tem feito.

Na semana passada, Luciana Genro, ex-candidata à presidência da república brasileira pelo PSOL, enviou uma carta ao primeiro-ministro do Syriza, Alexis Tsipras, felicitando-o pela vitória, de onde extraio este trecho:

Quando estive aí em 2012 ainda eram poucos aqui no Brasil que acreditavam e apostavam na Syriza como a alternativa necessária para governar a Grécia. Nós do PSOL apoiamos e apostamos em vocês desde o início, pois travamos a mesma luta: defender os direitos do povo, seja contra a direita, seja contra uma velha esquerda que aplica os mesmos planos da direita. Este foi o embate vitorioso que fizeste aí. Eu, aqui, como candidata à presidência do Brasil no ano passado, também enfrentei esta luta e é o embate que o PSOL seguirá travando junto com o povo e a juventude nas ruas do Brasil. Nossas ideias no Brasil ainda são minoritárias, mas somos muito orgulhosos pelo fato do meu nome, representando o PSOL na disputa presidencial, ter recebido o voto de 1 milhão e 600 mil brasileiros nas eleições de outubro passado (GENRO, 2015a).

No entanto, é importante lembrar que, na prática, o PSOL apoiou a reeleição de Dilma, especialmente através de seus parlamentares que chamaram votos na candidata petista, a quem agora chama de “cara de pau”3 (GENRO, 2015b).

O PSOL felicita a vitória do Syriza, mas se furta a exigir que o Syriza mobilize as mais de 2,2 milhões de pessoas que votaram ansiando por mudanças. Nessa lógica, a vitória de um partido “anticapitalista” na Europa é tomado como um feito radical e, caberia à esquerda apoiar e participar desse governo, de forma adesista4; Mas isso não parece correto.

Hoje, uma das exigências que devem ser feitas para atender às necessidades do povo grego é a anulação da dívida pública, uma dívida criminosa e impagável que representa, atualmente, cerca de 177% do PIB grego e estrangula sua economia5. Mas isso o PSOL é incapaz de exigir, pois, no Brasil, ele se limita a defender a auditoria da dívida pública.

Lenin, n'O Estado e a Revolução – retomando Engels – falava sobre os impostos e a dívida pública, bem como seus desenvolvimentos em uma “república democrática”: “Na República Democrática – continua Engels – 'a riqueza utiliza-se do seu poder indiretamente, mas com maior segurança', primeiro pela 'corrupção pura e simples dos funcionários' (América), depois pela 'aliança entre o governo e a Bolsa' (França e América)” (2010, p. 33). Lenin afirmava que:

A onipotência da “riqueza” é tanto melhor assegurada numa república democrática quanto não está sujeita a uma crosta acanhada do capitalismo. A república democrática é a melhor crosta possível do capitalismo. Eis por que o capital, depois de se ter apoderado dessa crosta ideal, graças aos Paltchinski, aos Tchernov, aos Tseretelli e consortes, firmou o seu poder de maneira tão sólida, tão segura, que nenhuma mudança de pessoas, instituições ou partidos, na república democrática burguesa, é suscetível de abalar esse poder (2010, p. 33-34).

A anulação da dívida pública não é algo absurdo e muito menos inédito na história, mas exige ruptura. Os Estados Unidos da América anularam suas dívidas várias vezes, e a primeira delas ocorreu logo após a sua independência política, dando-lhe substância: “Em 1776, as treze colônias britânicas da América do Norte uniram-se para constituir os Estados Unidos, pondo assim termo à relação de dependência que mantinham com a Coroa britânica. O Estado revolucionário recém-formado libertou-se do fardo da dívida, declarando nulas as dívidas que tinha com Londres” (MILLET; TOUSSAINT, 2006, p. 153).
Os revolucionários russos também fizeram isso, pondo fim a uma dívida criminosa e contraída às custas da exploração e do extermínio dos trabalhadores russos e de outras nacionalidades: 
 
Em janeiro de 1918, a então formada URSS comunista negou-se a assumir a responsabilidade dos empréstimos contraídos pela Rússia czarista e anulou incondicionalmente todas as dívidas. O novo Estado, nascido de uma revolução que pretendia pôr termo à guerra e devolver a terra aos camponeses, recusou assumir os empréstimos que tinham sido contraídos principalmente para apoiar a carnificina da Primeira Guerra Mundial. Além disso, o governo queria marcar a ruptura com o regime precedente (2006, p. 154).

Mas, conforme avaliava Almeida – pouco antes da vitória do Syriza: “Um possível governo Syriza na Grécia será um governo burguês. O Syriza é uma organização pequeno-burguesa com uma direção e um programa reformistas, que não se coloca nenhuma tarefa de ruptura com o capitalismo” (2015). E isso não pode ser desconsiderado.

Não bastasse dispor-se à negociar a dívida6, em vez de anulá-la, o Syriza selou um pacto com o partido burguês de extrema direita, Gregos Independentes (ANEL) – que obteve 4,73% de votos – em nome da governabilidade. O líder do Gregos Independentes, Panos Kamenos7, será o novo ministro da defesa grego. Um porta-voz do partido de extrema direita, relembrou que “uma de suas linhas-mestras, a da imigração, 'será respeitada'” e citou os planos para “expulsões massivas de ilegais” e um “limite de 2,5% da população de imigrantes” (RTVE.ES, 2015).

O papel da esquerda, prioritariamente, “não deve ser apoiar (nem incondicional nem “criticamente”) este governo, e sim explicar pacientemente à classe trabalhadora seu verdadeiro caráter capitalista. A confiança dos revolucionários não deve estar em Tsipras, mas na mobilização independente da classe trabalhadora grega, que amplamente demonstrou disposição para lutar nestes anos” (SUGASTI, 2015).
Mas os setores reformistas que se encontram sob o espectro da “esquerda” preferem limitar-se às felicitações ao novo governo grego, como o faz Luciana Genro. Se proclamam radicais, mas não fazem nada além de se perfilarem ao lado daqueles que refreiam o ímpeto das massas e encurtam o seu horizonte de possibilidades, educando-lhes na confiança à democracia burguesa.

Na Espanha, o Podemos, partido liderado por Pablo Iglesias, também é a expressão da canalização da energia social dos explorados e oprimidos para as eleições burguesas.

É significativa a avaliação de um importante analista do El País TV sobre a conjuntura política espanhola e o papel do Podemos: “Se o espetacular crescimento do Podemos responde à magnitude da ira cidadã, imaginem essa ira cidadã sem o Podemos? Imaginem essa ira descontrolada, solta, nas ruas? Os que criticam muito o Podemos deveriam começar por reconhecer o valor que tem a contribuição do Podemos à condução de toda essa ira dentro das margens da democracia” (GABILONDO, 2014). A mensagem é cristalina: imaginem essa ira popular sem um partido capaz de conduzi-la para dentro dos marcos da democracia burguesa?

No dia 31 de janeiro deste ano, o Podemos, inspirado na vitória do Syriza, convocou uma “marcha da mudança”, em Madrid, que contou com cerca de 300 mil pessoas8, na Praça Puerta del Sol e avenidas próximas. Centenas de milhares de pessoas mobilizadas e dispostas a mudar os rumos de sua sociedade, dispostas a mudar o rumo de suas vidas e o Podemos se empenhou em conduzir a indignação e os anseios populares para as eleições burguesas! E, claro, não faltou a palavra “democracia” para adocicar um programa que, simplesmente, não está à altura das necessidades dos trabalhadores e do povo espanhol9.

Iglesias fez um discurso próprio de um comício, com os olhos voltados para as urnas, reivindicando o direito ao sonho quixotesco. “Hoje sonhamos para tornar o nosso sonho realidade em 2015. Neste ano começamos algo novo, este ano é o ano da mudança e vamos derrotar o PP nas eleições”, proclamou antes de citar o exemplo de Alexis Tsipras, líder do Syriza e ganhador das eleições gregas no domingo (MANETTO, 2015).

A vitória dos explorados e oprimidos na Rússia, em 1917, despertou a confiança no proletariado mundial, mostrando que era possível construir um governo revolucionário, sob o controle dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas em quem o Syriza e o Podemos confiam – além deles mesmos? Qual é a classe social que o Syriza e o Podemos inflam o ânimo e ajudam a mobilizar para construir a mudança de que tanto falam em seus respectivos países e na Europa?

Encontramos n'O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Marx, uma breve exposição sobre a pequena burguesia e a criação do Partido Social-Democrata, uma coalizão de pequeno-burgueses e trabalhadores criada após as jornadas de junho de 1848, que nos parece sempre interessante.

Não há partido que exagere mais os meios de que dispõe, nenhum que se iluda mais levianamente sobre a situação do que o democrata. O fato de um segmento do exército ter votado na Montanha bastou para convencê-la de que o exército inteiro se rebelaria junto com ela. […] por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses de duas classes se embotam de uma só vez, o democrata tem a presunção de se encontrar acima de toda e qualquer contradição de classe. Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo (2011, p. 67).

Para Lukács, “a burguesia e o proletariado são as únicas classes puras da sociedade. Isto é: somente a existência e a evolução dessas classes repousam exclusivamente na evolução do processo moderno de produção, e não se pode representar um plano de organização da sociedade em seu conjunto a não ser a partir de suas condições de existência” (1979, p. 31). Lukács utiliza esse mesmo trecho, escrito por Marx, para desenvolver essa sua afirmação, e assim prossegue:

[a pequena burguesia] Desviar-se-á, em sua ação, de todas as decisões cruciais da sociedade e deverá, necessária e alternativamente, lutar, e sempre inconscientemente, por uma ou outra das direções da luta de classes. Seus próprios objetivos, que existem exclusivamente na sua consciência, tomam, necessariamente, formas sempre mais vazias, sempre mais destacadas da ação social, puramente “ideológicas” (1979, p. 32).

A euforia dos reformistas com a vitória de um dos seus é compreensível. Ao levar a sério a ideia de que “nasceu para brilhar”, uma parte da pequena burguesia acaba sempre atraída para a órbita dos vencedores nomeáveis e cujos rostos são distinguíveis. Assimila mal os sentidos das derrotas sociais, sente desconfiança e – muitas vezes – repulsa pelos derrotados, cujos rostos são indistinguíveis pelo seu adensamento. No caso brasileiro, o PSOL está sempre pronto a exultar as vitórias eleitorais reformistas porque acredita que vencer nas urnas é o seu destino. Aplaudindo, efusivamente, hoje, espera ser aplaudido amanhã. Mas também espera a gentileza de ser poupado das críticas e das exigências.
 
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Notas:

3Isso lembra um dos episódios mais engraçados do período eleitoral, quando Marina Silva (PSB) twitta, em inglês, para o ator norte-americano, Mark Rufallo, que perguntara sobre sua posição em relação ao casamento igualitário dizendo que apoiava os direitos dos LGBTs – quando, na verdade, mudara seu programa sob a pressão pública de Silas Malafaia. Ao perceber que Marina Silva não defendia o casamento igualitário, o ator retirou seu apoio à candidatura do PSB. Ver: http://noticias.terra.com.br/eleicoes/marina-silva/mark-ruffalo-retira-apoio-a-marina-que-reage-no-twitter,2752db32493c8410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html, ver também: http://www.pstu.org.br/node/20972.
 
4Tal compreensão está presente no texto de Fuentes: http://fernandapsol.com.br/?p=1326.
 
6Ver os 40 pontos do programa Syriza: http://links.org.au/node/2888. Ver a recente declaração do ministro das finanças Yanis Varoufakis: “Tentaremos convencer todos nossos sócios [...] de que devemos achar uma solução que beneficie o interesse comum europeu”, afirmou. Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/30/internacional/1422631270_514624.html.
 
7[Kamenos] aproveitou seu minuto de glória para roubá-lo de Tsipras, a quem corresponderia, na realidade, a responsabilidade de tornar o acordo oficial. 'Hoje Alexis Tsipras visitará o presidente e anunciará o Governo', acrescentou Kamenos, que foi deputado da até então governista Nova Democracia”. Ver: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/26/internacional/1422261467_011633.html. Ver, também: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/27/internacional/1422366028_371228.html
 


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Referências


GABILONDO, Iñaki. Se imaginan? La Voz de Iñaki. 3 nov. 2014. Disponível em: http://bit.ly/1tacZKL.

GENRO, Luciana. Carta ao Primeiro Ministro da Grécia, Alexis Tsipras. Disponível em: http://lucianagenro.com.br/2015/01/carta-ao-primeiro-ministro-da-grecia-alexis-tsipras/. Acesso em: 01 de fev 2015a.

GENRO, Luciana. Sou Syriza e não é de hoje. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FInternacional%2FSou-Syriza-e-nao-e-de-hoje-%2F6%2F32758. Acesso em: 01 de fev 2015b.

LENIN, Vladimir. O Estado e a Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

LIT-QI. Syriza canaliza um enorme rechaço popular aos ataques da troika europeia. Disponível em: http://www.litci.org/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=4225:syriza-canaliza-um-enorme-rechaco-popular-aos-ataques-da-troika-europeia-&catid=26:grecia&Itemid=96. Acesso em: 01 fev 2015.

LUKÁCS, Gyorgy. A Consciência de Classe. In: VELHO, Otávio; PALMEIRA, Moacir; BERTELLI, Antônio (Org.) Estrutura de classes e estratificação social. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
MANETTO, Francesco. Podemos transforma marcha em ato político com milhares de pessoas. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/31/internacional/1422673981_619047.html. Acesso em 01 fev 2015.

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

MILLET, Damien; TOUSSAINT, Éric. 50 perguntas 50 respostas: sobre a dívida, o FMI e o Banco Mundial. São Paulo: Boitempo, 2006.

PORTAL FÓRUM. Banco dos EUA compara líder do Syriza a Lula, para acalmar investidores. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/01/banco-eua-compara-lider-syriza-lula-para-acalmar-investidores/. Acesso em: 31 jan 2015.

RTVE.ES. Tsipras nombra un gobierno en clave económica para negociar con la troika y enterrar la austeridad. Disponível em: http://www.rtve.es/noticias/20150127/tsipras-formara-gobierno-diez-ministerios-dara-defensa-socios-coalicion/1087683.shtml. Acesso em: 31 jan 2015.

SUGASTI, Daniel. Primeiros passos do Syriza no poder. Disponível em: http://www.litci.org/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=4229:primeiros-passos-do-syriza-no-poder&catid=26:grecia&Itemid=96. Acesso em: 01 fev 2015.

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