A Conjuntura política brasileira e a crise aguda do capitalismo



Jóe José Dias e Diogo Pauleto

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen. In: O Nome das Coisas

Vivemos um período de crise acentuada do capital. E não nos referimos apenas ao capitalismo tupiniquim, mas na América Latina. No mundo inteiro, bem da verdade. Gigantescas mobilizações, radicalizações de protestos, repressão, insurreições, resistência dos povos, numerosas greves e o ressurgimento eleitoral da extrema direita em alguns países são apenas alguns reflexos desse processo. 2018 foi, sem dúvida, um ano bastante turbulento na política internacional. O que dizer do povo nicaraguense, que há meses luta contra a ditadura de Daniel Ortega e Sérgio Murillo; ou da marchas de imigrantes hondurenhos; ou do grande confronto entre Palestinos e o Estado sionista de Israel, na denominada “marcha de retorno”, que completou, em 2018, 70 anos. Tivemos ainda manifestações massivas de mulheres na Argentina, Irã, no Chile, Brasil, etc; greves enormes no Brasil, como a dos caminhoneiros, que parou o país por dias; as mobilizações radicalizadas dos “coletes amarelos”, na França - que teve ecos na Bélgica e na Espanha, greves radicalizadas e cada vez mais numerosas na China, EUA e na Grécia, que inclusive ajudaram a desmascarar, neste último período, o governo do Syrisa. Eis alguns exemplos do que se vislumbrou no horizonte político neste ano.

Por outro lado, o povo húngaro vem avançando na luta contra o ultradireitista e xenófobo Orbán: conseguiram derrubar o decreto que denominaram lei da escravidão”. Mal o ano iniciou, na verdade, e já nos deparamos com uma importantíssima greve dos metalúrgicos alemães pela semana de trabalho de 28 horas. Em Portugal, greves violentas dos estivadores e outras dezenas de setores; Na Albânia, as ruas gritaram contra taxas universitárias e na Sérvia, contra a violência estatal. Tivemos também rebeliões em países da África, como Costa do Marfim e África do Sul, dentre outras.

A instabilidade política, entretanto, longe de afetar apenas os países subdesenvolvidos, como já vemos, afeta também os hegemônicos. A própria eleição de Trump e o resultado das eleições de meio mandato”, realizadas em novembro passado mostram, mesmo que de forma distorcida, uma polarização importante, impulsionada pelas insatisfações das ruas, como uma mudança no mapa eleitoral estadunidense. Em outras palavras, essa situação de conflito e polarização entre as classes não afeta somente os países pobres e semicoloniais. Afeta igualmente, mesmo que de maneira desigual (porém combinada), os países imperialistas centrais.

Nestes processos, houve vitórias e derrotas da classe trabalhadora, avanços e retrocessos. O importante é que a classe trabalhadora avança nas lutas e está tirando suas próprias conclusões a partir dessas experiências. A guerra social promovida pelos capitalistas contra os demais setores da população, em especial à classe trabalhadora, no seu compto mais geral, não se mostrou ainda vitoriosa. Longe disso. Porém, levando-se em conta o ocorrido neste ano, é de se supor que os próximos embates do ano que virá (2019) serão mais violentos, podendo até ser decisivos, em certa medida.

O confronto cada vez mais latente entre revolução e contrarrevolução aberto a partir do novo ciclo descendente do capitalismo, iniciado na crise de 2007/2008, se dá graças à instabilidade política e a uma maior polarização da luta de classes. A instabilidade se manifesta no aumento da tensão e da quebra do equilíbrio da ordem capitalista, que culmina em crises internas dos próprios países centrais, como EUA, Alemanha e França, por exemplo. Já a polarização recai em enfrentamentos cada vez mais agudos entre revolução e contrarrevolução, criando crises nos partidos reformistas (e também tradicionais) e abrindo caminho para posições mais radicais, como a esquerda revolucionária e a extrema direita. Sob essa ótica é que devemos compreender esse rico mosaico.

Diante da queda tendencial da taxa de lucros, a burguesia necessita retomar (internacionalmente) o crescimento de seus lucros. Para isso age diretamente no “chão da fábrica”, impondo cada vez mais medidas abusivas aos trabalhadores: atraso de salários, diminuição dos salários, assédio para trabalhar horas a mais (entrando mais cedo e saindo mais tarde), aumento do ritmo de produção e até mesmo promessas idiotas de recompensas fúteis para os que atenderem estas imposições, chegando até a demissões e fechamento de plantas de fábricas. Todas essas medidas, além de acentuar as contradições já inerentes ao capitalismo, cria outras, tornando a vida dos trabalhadores um verdadeiro martírio.

Todavia, para que se apliquem todas essas medidas políticas, a classe dominante, a burguesia, utiliza-se do aparato repressor dos estados que ela controla, por meio dos governos por ela financiados. Sem esses estados para legitimar esses ataques seria-lhe impossível avançar nessas medidas, pois somente respaldado neles é que consegue, enquanto classe, avançar nos ataques. O Estado não é neutro. Longe disso! Mesmo o “pai” do liberalismo político, John Locke, explicou a criação do Estado pelos donos de propriedade privada (homens bons), com o objetivo de melhor protegê-la, e isso tudo em 1681.

Os estados modernos – como os conhecemos – foram forjados pela classe dominante para servir aos seus interesses (o tempo todo), principalmente em tempos de crise aguda do capital. Eles são utilizados para controlar as contradições entre as classes. Para tanto, a classe que os controla, como forma de subjugar as outras, utiliza-se de diversos mecanismos de coerção: dos mais sutis, como o da democracia burguesa, dando a falsa ideia de uma democracia exercida por meio do voto, até as mais autoritárias, quando estas estão desgastadas, como as ditaduras.

Não à toa a preferência que tem a burguesia em levar às eleições – como forma preferida – processos radicalizados de luta, como foi o caso do Egito, por exemplo, na chamada primavera árabe. Ou então todo o processo revolucionário grego, dentre outros. É que as eleições – que servem apenas para legitimar o poder exercido pela burguesia – dão a falsa ideia de que somos agentes de um pretenso estado de mudança de um estágio a outro.

E aí entramos em uma seara bastante em voga nos dias de hoje: a defesa da democracia, tratada aqui de maneira abstrata, rudimentar, ou, como diz Lenin, “pura”. Não foi incomum, aliás, foi bastante frequente, corriqueiro na verdade, a vulgarização deste conceito, aqui no Brasil, principalmente depois o impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef, tratado (também de maneira vulgar) como um golpe, discurso alavancado pelo próprio PT. Muitos saíram às ruas, nas redes sociais, em jornais de “esquerda” país a fora, e até no exterior, em defesa da democracia. Raros, contudo, foram aqueles que a discutiram de maneira sóbria, séria e consistente.

Lenin, em seu livro “O Renegado Kautsky”, no capítulo sobre as democracias operária e burguesa acusa não se poder falar de “democracia pura” enquanto vivermos em um mundo dividido por classes sociais. Segundo o autor: “‘democracia pura’ é não só uma frase de ignorante, que revela a incompreensão tanto da luta de classes como da essência do Estado, mas também uma frase triplamente vazia, pois na sociedade comunista a democracia, modificando-se e tornando-se um hábito, extinguir-se-á, mas nunca será democracia ‘pura’”.

“Democracia pura” é, então, uma frase liberal bastante mentirosa. Um engodo que grande parte da esquerda – intencionalmente – utiliza para justificar suas políticas recuadas. Trata-se de um truísmo utilizado no intuito de eludir a essência burguesa de democracia, sinônimo de capitalista. Inclusive setores que se intitulam marxistas, e mesmo trotskistas, esquivam-se dos “ensinamentos” de Marx e Engels e de toda a experiência acumulada por anos de lutas do marxismo revolucionário e consagram a este termo um lugar especial em suas análises. Apropriam-se do marxismo aquilo que é caro aos liberais, como a superioridade não somente do capitalismo, mas da democracia forjada pela burguesia em relação à idade média, de maneira geral, para vociferar aos quatro ventos sua superioridade. No entanto, “rejeita, silencia e esbate no marxismo aquilo que é inaceitável para a burguesia (a violência revolucionária do proletariado contra a burguesia para a suprimir)”, conclui Lenin.

Vejamos o que dizem Engels e Marx, em citação direta de Lenin:

Não só o Estado antigo e feudal, mas também “o moderno Estado representativo é um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital” (Engels, na sua obra sobre o Estado). “Ora, como o Estado é, de fato, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade, mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade o Estado deixa de existir como tal” (Engels, na carta a Bebel de 28.III.1875). “O Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia” (Engels, no prefácio à Guerra Civil de Marx). O sufrágio universal é “o barômetro da maturidade da classe operária. Mais não pode ser nem será nunca, no Estado de hoje (Engels, na sua obra sobre o Estado. O senhor Kautsky mastiga da forma mais fastidiosa a primeira parte desta tese, aceitável para a burguesia. Mas o renegado Kautsky passa em silêncio a segunda, que sublinhamos e que não é aceitável para a burguesia!). “A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo... Em vez de decidir de três em três anos ou de seis em seis que membro da classe dominante havia de representar e reprimir (ver- und zertreten) o povo no Parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em Comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolherem operários, capatazes e contabilistas no seu negócio” (Marx, na obra sobre a Comuna de Paris, A Guerra Civil em França).

Em suma, há séculos que a burguesia se apropria do Estado para exercer sobre as classes a ela subjugadas seu ideal de mundo. E o faz, em todas as vezes, utilizando-se desses mecanismos pseudo-democráticos (é notável o fato de que a democracia burguesa, esta que conhecemos hoje, não tenha suas origens sob bases minimamente democráticas). E aí retornamos à mesma problemática: os limites da democracia burguesa. Não podemos nos esquecer que ela nos deu de presente um protofascista, eleito dentro das regras deste jogo. Defendê-la, é, em suma, defender também Bolsonaro. Alardeá-la como legítima é dar carta branca a Cunha, Temer, Renan Calheiros, Aécio Neves, dentre outros. E, para aqueles que se intitulam marxistas, a contradição se torna uma tragédia, não somente por ludibriar os trabalhadores, mas por negar o marxismo e jogar na lata de lixo um dos seus mais básicos ensinamentos: a do caráter do estado e do papel da democracia burguesa.

Não podemos cobrir o sol com uma peneira; o regime democrático burguês está em crise, do mesmo jeito que está o capitalismo. Vivemos em uma época em que todos os valores burgueses estão sendo questionados pelas massas. E, no entanto, o que fazemos? Apagamos o anseio de lutas jogando um balde de mentiras na cara dos trabalhadores. Dizemos a eles que a democracia lhe é boa, embora sinta na pele o contrário. Afirmamos que vale à pena defendê-la, embora tenha sido utilizada para o gozo e para satisfazer as necessidades de uma única classe social. Afirmamos o tempo todo que o problema da corrupção é inato ao ser humano e não fruto de um sistema econômico que depende da corrupção para a sua sobrevivência. Ilusões, ilusões, ilusões. O Estado é burguês e é utilizado pelos capitalistas para retomarem o crescimento da taxa de lucros. É importante reafirmar que esta necessidade de retomada das taxas da burguesia é uma necessidade global, do capitalismo, pois derivam daí todos estes planos de austeridade impostos para a classe trabalhadora no mundo.

No Brasil, desde 2007/2008 já se sentia os efeitos das manifestações da crise mundial, embora o Estado brasileiro, à época governado pelo PT, desmentisse o assunto, disseminando a ideia de que não passava de uma simples “marolinha”. Não tardou muito para que a afirmação de Lula fosse desmentida, mostrando-se correto o prognóstico já por nós levantado. Tanto que, de lá para cá, a crise só fez aumentar. É que, no fundo, ressoa nas palavras destes “sábios embusteiros”, a velha crítica de Trotsky (Imperialismo e crise da economia mundial, p.35): “Economistas burgueses e reformistas, que têm um interesse ideológico em embelezar a situação difícil do capitalismo, dizem: em si e por si a atual crise não prova nada; pelo contrario, é um fenômeno normal. Assim como Trotsky, não concordamos com isso!

Há mais de 10 anos, hoje, no Brasil, o descontentamento dos trabalhadores se agudiza. Amargamos, de acordo com o IBGE (agosto deste ano), com 27,6 milhões de desempregados. O PT (juntamente com MDB de Temer) não governou para os trabalhadores, pelo contrário, governou para o capital, para a burguesia. A classe trabalhadora não saiu na defesa de massas do governo Dilma. A maioria dos trabalhadores aceitou a instrumentalização parlamentar do impeachment  (e ele existe exatamente para isso!), os trabalhadores não saíram às ruas contra a prisão de Lula (e o PT nem queria isso!). Diante deste cenário de crise que se arrasta agudizando desde 2007, os governos de conciliação de classes escolheram muito claramente manter o nefasto jogo de alianças junto aos seus chefes: a burguesia e suas frações de classe.

Criou um conjunto de “narrativas” – expressão bastante utilizada hoje em dia nos meios político e sindical – que não se sustentam na realidade histórica mais imediata: o tempo presente. Parte de seus dirigentes inventaram a narrativa do golpe. Diante deste suposto golpe era necessário combater os golpistas, mobilizando, para tanto, sua gama de intelectuais para o desenvolvimento desta narrativa através de palestras, cursos, etc. Mas o que vimos foi exatamente o contrário. Mal foi dado o suposto golpe e a cúpula do partido (PT) já estava lá deliberando (internamente) as alianças com os golpistas para as eleições municipais! Calma, não acabou ainda… Muitos quadros importantes do PT não “gostaram” dessa narrativa do golpe, como foi o caso do candidato às últimas eleições pelo partido, Fernando Haddad. Neste caso, Haddad, continuou discordando do golpe (ou do conceito), vindo a demonstrar seu ponto de vista abraçando os supostos golpistas com palavras decorosas de dar orgulho em muita gente (talvez a família de Renan Calheiros seja emblemática). As construções destas narrativas são artificiais. Marx e Engels desenvolveram um conceito preciso para isso: Ideologia.

Mas não pararam por ai. Outra narrativa construída é a do fascismo. Esta veio somar com a do golpe. Estaria acontecendo a ascensão do fascismo no Brasil e seria necessário apoiar o PT para que se combatesse este grande mal. De acordo com a narrativa (Ideologia), seria preciso votar no PT para se combater o fascismo no Brasil. Francamente! Mas o que seria fascismo? Bem, segundo a simples concepção filosófica do termo, nada mais é que um movimento político e filosófico ou regime (como o estabelecido por Benito Mussolini na Itália, em 1922), que faz prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador.

Mas podemos avançar um pouco mais neste conceito para que possamos compreendê-lo melhor, de maneira mais rica, visando a compreender não somente o seu caráter, mas sua função. No que concerne àquele (ao caráter), vale lembrar que, dentre tantas coisas, o fascismo tem seu exército próprio, seus interesses e sua própria lógica de poder. É, sem dúvida, o jogador reserva da burguesia, utilizado somente em momentos muito específicos da luta de classes. Na Itália, Polônia ou Alemanha, por exemplo, teve ele que entrar em antagonismo violento não somente com a social-democracia de seu tempo, mas com todos os demais partidos da burguesia. Criou um regime próprio e entrou em consonância com a própria lógica do sistema de produção capitalista: a anarquia econômica se completou com a anarquia política.

Porém, como ascende o fascismo na Europa neste período? Segundo Trotsky, em “Revolução e contrarrevolução na Alemanha” (p.25): “o fascismo provém de duas condições: de um lado, de uma grave crise social; de outro lado, da fraqueza revolucionária do proletariado alemão. A fraqueza do proletariado, por sua vez, tem duas causas: primeiro o papel histórico particular da social democracia, que ainda é uma agência poderosa do capitalismo nas fileiras do proletariado; em seguida, a incapacidade centrista da direção do P.C. em unir os operários sob a bandeira da Revolução”.

Em suma, o ascenso de Hitler na Alemanha, em 1933, deu-se devido ao fracasso do comunismo e do reformismo como saídas políticas viáveis tanto para a classe trabalhadora, como para setores enraivecidos da classe média e da pequena-burguesia. o velho embate entre revolução e contrarrevolução. Segundo Trotsky, Hitler seria vencido somente mediante uma frente única que compreendesse os comunistas do P.C. stalinista com os sociais-democratas, reformistas naquele período. No entanto, graças ao sectarismo do partido comunista, que via a social-democracia daquele período como conciliadora do nazismo, negou-se a empreender tal tarefa.

Voltemos a Trotsky (p.294-295):

Admitamos que a social-democracia, sem intimidar-se perante os seus próprios operários, quisesse vender a Hitler a sua tolerância. Mas o fascismo não faz essa transação: não precisa da tolerância, mas da demolição da social-democracia. O governo de Hitler só pode realizar a sua tarefa se quebrar a resistência dos trabalhadores, desfazendo-se de todos os órgãos capazes de tal resistência. Eis em que consiste o papel histórico do fascismo.
Os stalinistas se limitam a um julgamento puramente psicológico ou, mais exatamente, moral, dos covardes e egoístas pequeno-burgueses que dirigem a social democracia. É lícito supor que esses traidores patenteados se separem da burguesia e a ela se contraponham? Método tão idealista pouco tem de comum com o marxismo, que não parte do que os homens pensam de si mesmos e do que desejam, mas, antes de tudo, das condições em que estão colocados e de que modos essas condições se transformarão.
A social-democracia sustenta o regime burguês, não por causa dos lucros dos magnatas do carvão, do aço e outros, mas por amor ao seu próprio lucro, o qual ele recebe, como partido através do seu numeroso e potente aparelho. Certamente, o fascimo nenhuma ameaça constitui para o regime burguês, cuja defesa está afeta à social-democracia. Mas o fascismo prejudica a força que a social-democracia exerce no regime burguês, bem como as rendas que ele recebe por seu desempenho. Se os stalinistas esquecem este lado da questão, não o perde de vista a social-democracia, que considera o fascismo como um perigo de morte, pairando não sobre a burguesia, mas justamente sobre ela, social-democracia.
Quando mais ou menos há três anos, acentuamos que o ponto de partida da próxima crise política, segundo todas as probabilidades, se formaria em torno da incompatibilidade entre a social-democracia e o fascismo; quando, baseados nesse fato, acusávamos a teoria do “social-fascimo” de ocultar, em vez de desvendar, o conflito próximo; quando chamávamos atenção para a possibilidade da social-democracia, com uma parte considerável de seu aparelho, ser arrastada, pela marcha dos acontecimentos, a uma luta contra o fascismo, proporcionando ao Partido Comunista um ponto de partida favorável à ofensiva ulterior – muitos camaradas nos acusavam – e havia entre eles não só funcionários alugados, mas até verdadeiros revolucionários – de “idealizar” a social-democracia. Só nos restava dar de ombros. É difícil discutir com gente cujo pensamento para precisamente no ponto em que a questão apenas começa para os marxistas.

Se vivêssemos, na atual conjuntura, o perigo do ascenso do fascismo imediato, a política correta (como já descrito) seria uma frente única com todas as correntes possíveis: reformistas, marxistas, liberais, etc, para derrotá-lo. No entanto, o que estamos presenciando é justamente o inverso: uma batalha parlamentar, protagonizada pelo PSL e outros partidos da direita tradicional de um lado, e PT, PSOL e PCdoB do outro, mas cuja própria CUT (Central Única dos Trabalhadores), braço sindical do PT, pareceu aderir ao “chamar Bolsonaro para o diálogo”, com a justificativa vil de que trabalhadores tenham votado em seu programa. Aceita inclusive negociar pautas da contrarreforma da previdência, desde que expurgue outras, das quais não fez ainda sequer menção clara.

Há quem acredite que estamos vivendo uma “onda conservadora” e que esta tenha fortalecido uma pretensa ascensão do fascismo, estereotipada – no caso brasileiro – na figura de Jair Messias Bolsonaro. Contudo, como vimos, tal ideia é contraditória. Primeiro porque o fascismo é um movimento de massas, que visa única e exclusivamente a destruir qualquer forma de organização da classe trabalhadora, instituindo um estado de exceção, fortemente nacionalista, de proteção à burguesia nacional, à economia e às fronteiras nacionais. Segundo, porque ele surge da necessidade de se derrotar um ascenso em um momento de crise aguda, onde outros mecanismos mais seguros, como a democracia, entram em grave crise. O fascismo é então fruto da disputa entre revolução e contrarrevolução e geralmente “entra em cena” em momentos de crise revolucionária, como uma última saída da burguesia para se manter no poder. Assim, se há uma onda conservadora, compreendida aqui por um conjunto de ideias favoráveis à manutenção de um estado de ordem, por que a necessidade de um estado fascista, sendo este regime muito arriscado?

Não afirmamos, contudo, que o governo Bolsonaro será tranquilo e que não haverá repressão. Pelo contrário! Cremos inclusive que não está descartada a possibilidade de um autogolpe, como ele mesmo tenha deixado transparecer, caso não consiga, pelas vias democráticas, aplicar as contrarreformas a que se propõe. Parte desse processo, inclusive, parece estar em andamento, como é o caso de ter eleito, nos cargos mais altos da república, inúmeros militares de alta patente das forças armadas. Não temos dúvida do caráter altamente repressor e genocida do seu governo e não temos dúvida alguma que o homem Bolsonaro traz consigo uma série de valores fascistas. Isso é claro.

Todavia, acusar-nos de escolher o candidato “A” em detrimento de “B” por tratar-se do “mal menor”, é grosseria. Insistimos nesse debate porque, para nós, está descartada a possibilidade muito em voga do mal menor, que cria uma falsa polarização de forças. O questionamento de quem é o mal menor, para os marxistas: Lula ou FHC, Dilma ou Collor, Bolsonaro ou Haddad ou Ciro Gomes, não faz o menor sentido. Isso porque o sistema que combatemos, o capitalismo, tem necessidade de todos estes elementos. Agora, se esses elementos entram em conflito ou em contradição, devemos aproveitar a ocasião para utilizarmos dele a favor da construção de uma alternativa revolucionária. Do mesmo modo que, se um destes elementos ameaça de morte a possibilidade de construção desta alternativa, ou mesmo o partido que se propõe a ela, devemos combatê-la de antemão.

Trotsky, no livro acima citado (p.126), já dizia:

Uma escala compreende sete notas. A pergunta: qual dessas notas é a “melhor”: dó, ré ou sol? é uma pergunta desprovida de sentido. O músico, porém deve saber quando e em que tecla bater. Compreenderam? Para uma compreensão limitada daremos ainda mais um exemplo: Se um inimigo me faz engolir diariamente pequenas porções de veneno, e se outro quiser, num beco, atirar contra mim, derrubarei primeiro o revólver das mãos deste segundo inimigo, porque isso me dará possibilidade de acabar com o primeiro. Isto, entretanto, não quer dizer que o veneno seja “mal menor” em comparação com o revólver.

Quando decidimos, contudo, em chamar voto no segundo turno em Fernando Haddad, não o fizemos por crermos no caráter classista do governo do PT e da frente popular. Tampouco por crermos na possibilidade do fascismo neste momento; assim, optamos por julgarmos na possibilidade franca de um autogolpe, alterando o regime e a classe política no comando do Estado e instaurando um governo bonapartista no país, extremamente violento. Isso cercearia demais as liberdades de organização, mas não as extinguiriam plenamente, como o faz o fascismo. O governo Bolsonaro traz consequências imprevisíveis. Isso é indiscutível; subestimá-lo seria um erro. O que questionamos é o ascenso do fascismo, como tal, neste momento histórico, e sua associação ao governo de Jair Bolsonaro (não a sua figura), um governo completamente privatista, entreguista, de abertura das fronteiras nacionais para o capital internacional e da destruição de uma economia nacional calcada na indústria de manufaturas. Um governo que já sinalou no aprofundamento da retirada de direitos, que colocou um ministro vinculado ao latifúndio para gerir a demarcação das terras indígenas... Também discordamos da “onda conservadora”, incongruente com a tese de suportar o fascismo.

Esse argumento raso (o da onda conservadora) teve apenas um apelo eleitoral, e é uma pena que tenha tido muitos adeptos. Embora o marxismo afirme que o homem não faz a história como quer, mas sim segundo as condições que encontra, ao mesmo tempo não nega em nenhum momento a subjetividade, a vontade e a inteligência como fatores muitas vezes decisivos na história. O ponto de vista que considera o homem um mero joguete nas mãos de forças econômicas e sociais supra-humanas, que perseguem seus próprios fins, não tem nada em comum com o marxismo. A concepção de sociedade que despreza a inteligência é, ela própria, carente de inteligência. As ideias, quando absorvidas pelas massas em movimento, se transformam em força material e, portanto, podem mudar os rumos da história. Assim Marx e Engels formularam o pilar de sua concepção materialista da história em A Ideologia alemã.

Evidentemente existem grupos políticos que desejaram dar um golpe institucional do governo petista de Dilma, mas não o fizeram, pois o regime lhes garantiam instrumentos para o afastamento de quem governa o executivo. Também é evidente que o fascismo existe sim no Brasil, inclusive, graças ao governo de Vargas, que Lula tanto elogiou! A questão aqui é outra: as narrativas petistas trabalham com meias verdades para esconder a sua responsabilidade política diante da classe trabalhadora. O PT é o grande responsável pelos desdobramentos da crise e o seu combate no Brasil.

Foram anos de conciliação de classes. A frente popular constituída pelo PT prometeu fazer o impossível: unir os trabalhadores à burguesia. Obviamente que isso enrijeceu a luta de classes, funcionando como uma espécie de colchão entre os distintos interesses de cada campo. O problema é que, como toda a frente popular, não fez isso para defender os trabalhadores; o fez a mando da burguesia.

Já nos primeiros anos de governo de frente popular no Brasil, por exemplo, enquanto lançava o famoso PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) que agradou, e muito, a setores industriais no país, Lula promoveu a segunda etapa da Reforma da Previdência iniciada por FHC. Passou a vigorar, a partir desta reforma, por exemplo, o aumento dos anos de contribuição das mulheres, o congelamento e o atrelamento dos salários vinculados ao PIB, restrições a alguns setores (aqueles conhecidos como serviços essenciais) ao direito de greve, dentre outros. Ademais, outras medidas, que vieram em consonância com esta reforma, como o super simples e a super receita (em 2007), permitiram aos empresários a retirada de direitos dos trabalhadores.

Outros tantos ataques vieram na sequência, tanto protagonizados por Lula, quanto por Dilma, como privatizações de empresas públicas; concessões à inciativa privada feitas com dinheiro público, como às das rodovias, aeroportos e estádios de futebol; a privatização de campos Pré-sal e a retirada do direito de monopólio das reservas naturais de petróleo pela Petrobras; a lei das PPP's, de 2004, que inovou até na maneira de se privatizar neste pais: além de garantir o financiamento público para serviços que seriam tocados pelo setor privado, instituiu ainda uma espécie de seguro para esses investimentos, no caso de não terem o retorno esperado. Em suma, o mundo perfeito para os capitalistas. Outra reforma na previdência; a abertura do capital dos Correios, depois de seu sucateamento; a lei antiterror, que cerceou a liberdade de manifestação e que será muito utilizada por Bolsonaro; a reforma política, que deixou o processo eleitoral ainda mais antidemocrático... Isso sem contar outras leis e/ou emendas absurdas criadas por esse governo reformista de frente popular (de conciliação de classes) criadas para favorecer os interesses dos grandes empresários.

Não nos iludamos em achar que o PT algum dia fora revolucionário. Não, longe disso! O Partido dos Trabalhadores nasceu de um forte ascenso de lutas no país como possibilidade concreta, naquele período, de representar a classe trabalhadora. E nasceu como a junção de milhares de correntes políticas autônomas. Tanto que sua direção era formada por membros da classe. Não foram os poucos que doaram parte de sua vida na construção do partido. Muitos surgiram depois, crendo ainda no papel progressivo do partido na política nacional. Em seu surgimento, o PT fora mais operário que o próprio PCB em seu auge aqui no país. Este se desfigurou muito rapidamente. Todavia, a Verdade é que, desde 1989, o PT fez uma escolha: a de partilhar para governar. Ou seja, se curvou à lógica da reação democrática da burguesia.

Hoje o PT é um partido burguês, com um programa elaborado para a burguesia. Seus dirigentes não são mais aqueles velhos e bons dirigentes trabalhadores, no sentido político que já se reivindicou (muitos são bilionários, grandes empresários). Há um bom tempo que a classe trabalhadora não se vê representada pela estrela branca do PT, tanto que, a duras penas conseguem sustentar a ideia de que são trabalhadores. Se ainda mantém em suas fileiras trabalhadores de base, deve-se em parte às suas fortalezas políticas, como CUT e MST. Porém, mesmo assim, a capacidade de mobilização por parte dessas centrais está cada vez mais restrito. E, sobre este aspecto, coloca outra desgraça para a classe trabalhadora: a burocracia sindical, que, ao contribuir com a patronal, lança uma descrença na representação sindical. O mesmo desdobramento ocorre com os partidos políticos e as representações políticas. Isso tudo muito bem sintetizado nestas expressões populares: “o sindicato não faz nada”, “os políticos são todos iguais; só pensam neles”.

Marx e Engels, na “Ideologia Alemã” (p.47), escreveram algo que é muito reproduzido, porém pouco aplicado:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.

Antes de condenarmos a classe trabalhadora, é preciso compreendê-la. Há sim sindicatos sérios, da mesma maneira que há – pelo mundo – partidos revolucionários. No entanto, não são referendados ainda pelas massas. No Brasil, por exemplo, em decorrência muito da perspectiva pequeno burgueusa das massas, as referências são aquilo tudo que é hegemônico, incluindo o PT, que se tornou mais um. Diante deste cenário, a classe trabalhadora, uma grande maioria, está presa na política que o próprio PT ajudou a educar. Olham para a cena política e já não confiam mais nos que aí está. São ainda reféns da reação democrática burguesa, presa ao individualismo e personalismo. Não acreditam em suas próprias forças e acabam buscando saídas em pretensos “líderes políticos”. É um ciclo vicioso. E eis a tragédia.

Ou seja, a opção por este reacionário do Bolsonaro (este sanguessuga corrupto e inescrupuloso, que por 30 anos permaneceu no PP (antigo PPB), um dos partidos mais corruptos do país, mais envolvido em corrupção que o próprio PT, por exemplo) acabou sendo a alternativa, pois não havia outro “líder político”, aos olhos das massas, que representasse a mudança. O classismo foi deixado de lado, substituído por uma perspectiva individualista. Esse horizonte pequeno burguês, cujo limite político esbarra no mito da democracia, arrastou os trabalhadores para o covil. E, sob este aspecto, o PT, reformista que é, deve ser apontado como responsável maior de todo este movimento dos trabalhadores que apoiam uma proposta de governo irracional, que defende abertamente o machismo, a homofobia, a lgbtfobia, o racismo, o etnocentrismo, que vai aprofundar o genocídio de indígenas no campo e dos negros na cidade, incentivar agressões monumentais ao meio ambiente e por ai vai.

Os apoiadores de Bolsonaro (defensor de torturadores e que fez e faz apologia à ditadura militar) estão sendo chamados por muitos como fascistas (em grande medida pela narrativa petista sobre o fascismo). Isso é um erro grave! Por quê? Porque o apoio a um candidato que representa o que há de pior na política hegemônica da burguesia não significa que este eleitor faça parte de uma falange urbana, ou mesmo as organizações armadas contra o regime, contra a constitucionalidade. Pensar assim é ignorar plenamente os elementos que apresentamos anteriormente. Esta leitura simplista interessa ao PT e suas colaterais. A narrativa petista do “fascismo” ignora (propositalmente) até mesmo os marcos do regime que o nefasto Bolsonaro utilizou para chegar ao poder e representar a burguesia. Esta explicação não interessa à classe trabalhadora e às organizações revolucionárias! É preciso ganhar politicamente a classe trabalhadora. Condená-la, a justiça da burguesia já faz todos os dias.

Tampouco cabe o argumento de que votar em Bolsonaro representa um ataque às instituições democráticas. Para setores importantes da pequeno burguesia, bem como para outros tantos da classe média, a democracia (mesmo a burguesa em stricto sensu) não passa de uma “casca”. Se ela não está funcionando, arranja-se outra alternativa. Assim funciona a cabeça de parcela importante desses setores. Não há portanto, relação alguma com predileção política pelo fascismo, tampouco há relação de grau de instrução o voto dado. Há sim uma relação de classe: classe média e pequena burguesia, por não terem uma plataforma política e por almejarem o poder, acabam invariavelmente reproduzindo valores burgueses e a eles se ajustando. Sua perspectiva é individualista, conservadora. Para o pequeno burguês o mundo pode ser por ele controlado; assim como para boa parte da classe média. Contudo, se é verdade que são classes conservadoras, não é mentira que sejam vacilantes. Isto é, podem vacilar da direita para à esquerda a depender da conjuntura política e das alternativas que vislumbra no horizonte político próximo. Não é, portanto, correta, a afirmação de que invariavelmente vão para a extrema direita estes setores.

É verdade que o fascismo existe e ele deve ser combatido nas ruas, não nas urnas. Os grupos neofascistas não são hegemônicos, principalmente se observamos os votos recebidos por Bolsonaro. Esta maioria que se manifesta deste nefasto candidato, mais expressa o seu descontentamento com a frente popular, conciliadora, encabeçada pelo PT. Associando a isto, séculos de uma formação social conservadora; reacionária; escravocrata e entregue aos interesses do imperialismo, temos um descontentamento histórico da classe que trabalha para sobreviver e que está desesperada para encontrar uma saída para a crise que vive no tempo presente. Ora, Engels e Marx continuam acertivos: a saída para os seus problemas os trabalhadores as encontram dentro de uma perspectiva burguesa, afinal, as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes.

Sejamos sinceros: todos aqueles que conhecemos e que votaram em Bolsonaro são realmente neofascistas? Nosso trabalho é organizar a classe contra a burguesia, os racistas, machistas, lgbtfóbicos, contra os neofascistas, contra os latifundiários e todos esses jamais serão destruídos com as eleições da burguesia. As demandas da classe trabalhadora jamais serão atendidas com as eleições. Nunca foram. É preciso ganhar politicamente a classe trabalhadora. Esta é a tarefa mais árdua daqueles que defendem a construção da luta revolucionária organizada. Uma imperiosidade se apresenta: como melhor conquistar a classe trabalhadora para a luta organizada? Diante de um governo da democracia da burguesia, cheia de limites estratosféricos (jamais confundir a democracia burguesa com a democracia operária) ou diante de um governo declaradamente antidemocrático e de apologia às ditaduras e as torturas? Aí está colocada parte das tarefas do nosso tempo sobre o que fazer diante da acentuada crise do capital.

Eis o panorama geral da conjuntura brasileira, abordando outros aspectos importantes para a análise. Contudo, a despeito da sucinta explicação da vitória de Bolsonaro, vejamos agora, para finalizarmos este debate, como se deu sua campanha eleitoral, baseada toda ela em mentiras e calúnias. Como ela foi construída. Nos apropriaremos de conceitos extraídos principalmente da neurociência, bem resumidos pelo bom texto de Romerito Pontes (incluso nas referências).

Iniciemos então nossa reflexão partindo de um dos “argumentos” frequentemente utilizados pela militância bolsonarista nas redes sociais: “esse pessoal ‘de esquerda’ sempre com esses ‘textões’ querendo nos ludibriar”. Pois bem, quando ouvimos ou lemos argumentos deste tipo estamos nos deparando com alguém que constrói sua reflexão a partir de uma espécie de ressignificação da realidade, calcada em uma simplificação onde todas as contradições são resumidas em uma guerra infinita entre o bem o mal, geralmente atribuindo todos os problemas do mundo a uma única fonte de dados. É muito corrente nas doutrinas políticas ou religiosas este princípio e acaba funcionando como uma espécie de “introdução” que visa a popularizar uma determinada doutrina, escoimando o sujeito de longos debates filosóficos.

A esse princípio soma-se o da ampliação e desfiguração, que nada mais é que a divulgação seletiva de informações cujo intuito é valorizar aquelas favoráveis para determinado objetivo, em detrimento das desfavoráveis. É sempre muito utilizada em propagandas políticas, mas em tempos de internet, esse processo recebeu especial atenção, já que se amplificou essa seletividade por meio das redes sociais favorecidas por estas ferramentas: apoiadores de determinada causa consomem, em sua grande maioria, apenas informações que confirmem seu ponto de vista, tidos como neutros, justos e corretos. Tudo aquilo que contradiz a este conjunto ideológico é tido como falso, mentiroso, e todo este processo de construção passa necessariamente pela caricaturização de correntes políticas e ideológicas contrárias, que reforçam e valorizam crenças preestabelecidas.

Um outro princípio comum é o da orquestração, que pode ser entendido como a constância de temas. Assim, uma boa campanha orquestrada consegue manter um mesmo argumento de fundo. No caso da campanha de Jair Bolsonaro, o ódio a tudo o que remeta à esquerda – tratada de maneira rasa e abstrata, como tudo o mais –, associando-a sempre ao fracasso, ao diferente, ao maléfico, ao terrorismo. Aproveitaram-se da crise econômica, da crise de legitimidade do regime democrático burguês, da piora da qualidade de vida das pessoas em seu compto geral, do aumento do desemprego, da violência, do fracasso do projeto reformista, enfim, do caos provocado por décadas de governos entreguistas, para orquestrar uma campanha de desmoralização geral, que culminava sempre em um sentido: o problema do Brasil é o excesso de direitos, a corrupção e o comunismo.

Temos ainda a repetição, que é sempre massiva, massante, entediosa, tendenciosa, cansativa. Esse é um princípio de extrema importância, já que a partir dele é que se vão proliferar, exaustivamente, os outros princípios. Não se trata aqui de valorizá-lo mais que os demais, já que este processo de “coerção neurolinguista” não existiria sem esse conjunto de técnicas. Contundo, uma propaganda política, principalmente a falaciosa, necessita dessa repetição, pois somente a partir dela é que se torna possível a “internalização” desse conjunto de preceitos e a negação de outros.

Notemos que, especialmente nesta campanha, via redes sociais, essas propagandas têm se apropriado dessas técnicas como “nunca antes na história deste país”. Todavia, pelo menos dentre os estudiosos sérios, não se acredita que a propaganda por ela mesma tenha o poder de inculcar massivamente informação que seja. Ela, de fato, não tem esse poder. E isso, militantes da área que for sabem muito bem. Os que creem nisso, recaem no mais raso, puro e vulgar idealismo. A propaganda age, isso sim, sobre um substrato existente: a propaganda, a informação, a mentira… só se alastram se puderem se firmar minimamente na realidade. E aí temos o quinto e último princípio, o da transfusão. Toda a pessoa, sociedade, cidade, país etc traz consigo um conjunto de valores que são utilizados sim pela propaganda. A arte do propagandista consiste, então, em saber conciliar a conjuntura político-econômica com esses elementos para apoiar a construção de sua propaganda e ideologia. Em suma, todos os absurdos que ouvimos, lemos e/ou assistimos não são criados pela propaganda, mas por ela instrumentalizados; tudo isso já circula na sociedade. Todas essas contradições existem, em maior ou menor expressão.

Vejamos como isso funcionou na prática. Retornemos dois meses, em plena disputa eleitoral, para compreendermos como se alicerçou a campanha de Jair Messias Bolsonaro, toda ela praticamente realizada pelas redes sociais (em sua maioria o WhatsApp) e financiada, grande parte, por caixa 2 de empresas apoiadoras, que investiram milhões no financiamento deste sistema complexo de calúnias e mentiras. Por meio do princípio da simplificação criou-se memes, palavras de ordem, montagens fotográficas, falsificações (muitas vezes grosseiras), slogans que difundiam seus preconceitos. Aos evangélicos, por exemplo, blasfemou-se os adversários por propalarem ideologia de gênero, por defenderem o aborto e por desrespeitarem ícones sagrados; para os conservadores e homofóbicos, o “kit gay”, a mamadeira erótica, a sexualização precoce das crianças nas escolas; àqueles desesperados pela crise econômica, como trabalhadores desempregados e setores pequeno-burgueses à beira da falência, associaram a tragédia econômica pela qual passa o pais à nação vizinha, a Venezuela, imersa em uma grave e profunda crise econômica, supostamente vista como um modelo político-econômico, etc. Todo esse sistema ideológico, como não poderia deixar de ser, foi associado ao comunismo, do qual teve como principal representante político-partidário o PT.

Toda esse conjunto de informações falsas, selecionadas com vistas a desmoralizar os adversários (ampliação e desfiguração), foi orquestrada calçando-se em ideologias (falsas consciências) existentes que ganharam muito maior amplitude em decorrência da atual conjuntura econômica, de plena crise da burguesia (transfusão). Essas matérias foram repetidas à exaustão por um longo período, por meio de um complexo sistema de fake news capaz de neutralizar qualquer notícia negativa que pudesse atingir o candidato. Utilizou-se, inclusive, da decadência e crise de confiança da imprensa burguesa pra impor sua própria “narrativa”. E mesmo assim, à medida que sua campanha ia sendo lentamente denunciada e compreendida, sofreu um desgaste considerável no segundo turno, perdendo espaço para o candidato do PT, Fernando Haddad, que tirou quase 9 milhões de votos de diferença, apesar de toda a conjuntura política e de todo este complexo mecanismo de calúnias.

Ora, o capitalismo está em crise, uma crise profunda, que, ao que parece, está longe de ser solucionada. Reflexo do seu esgotamento enquanto modelo econômico, que ano após ano vem levando a humanidade à beira da barbárie total. Isso, obviamente, além de reforçar e calçar todas essas ideologias, que no fundo são oriundas da luta entre as classes: racismo, homofobia, xenofobia, xenofilia, dentre outras, traz à tona com mais força outros elementos místicos de nossa sociedade, como a astrologia e as diversas teorias da conspiração. Some-se a isso o irracionalismo de nossos tempos, como o terraplanismo e algumas correntes pós-modernas, que lançam à tona um idealismo vulgar e raso. Eis aí um complexo sistema ideológico que atua como um potente catalisador com vistas a alienar e a dividir os trabalhadores, que, se bem utilizado, pode fomentar uma bem-sucedida campanha de ódio em massa. Eis o que foi realizado: a campanha de Bolsonaro soube trabalhar com isso ao atribuir à toda grande imprensa o rótulo de mentirosa (princípio da ampliação e desfiguração) ao questionar a votação por urnas eletrônicas, a confiabilidade dos institutos de pesquisa, as decisões da justiça, etc.

Essa descrença nas instituições burguesas, bem como na sua grande mídia, invés de ser debatida sob um viés crítico, foi sob um viés reacionário. A vitória de um programa extrema direita, com laivos fascistas, se deu graças a condições históricas e políticas geradas a partir de uma crise conjuntural do capitalismo, aliada à falta de alternativa de um programa de esquerda aos olhos das massas capaz de aglutinar os setores descontentes. A vitória de Bolsonaro é um fenômeno mundial, que tem como pano de fundo a situação pré-revolucionária em que vivemos oriunda do desgaste geral do capitalismo a nível mundial, aliada a uma grave crise de direção revolucionária que seja capaz de unificar em um programa socialista trabalhadores e setores médios.

Fizemos a maior greve geral da história que poderia ter posto abaixo não somente a reforma trabalhista, como o próprio governo Temer. Uma greve que, se continuada e aliada a outras lutas que ocorriam no país à época, abririam uma conjuntura desfavorável ao crescimento massivo desse discurso neofascista de Jair Bolsonaro, e aumentaria ainda mais a crise de legitimidade do regime democrático burguês. No entanto, tendo em vista o processo eleitoral e o receio de um ascenso de massas por fora das organizações burocratizadas dos trabalhadores, PT, CUT e os corruptos da Força Sindical enterraram qualquer continuação desse movimento. A CSP-Conlutas defendeu sozinha uma nova greve geral, mas ela ainda é pequena e a traição falou mais alto.

A polarização insuflada pelo PT e seus satélites cristalizou essa faixa de eleitores da ultradireita. Não é difícil entender: o PT desacreditado, o vice da Dilma metido em corrupção e atacando com contrarreformas os pobres, a classe média e os trabalhadores, e qual a política central da “esquerda” neste processo? “Lula Livre!” A única opção antissistema que apareceu pra massa foi Bolsonaro. E esse processo, por sua vez, fortaleceu os núcleos duros do bolsonarismo que, minoritários, expandiram-se e “colocando a cabeça pra fora”. Uma das piores coisas que foi feita esses anos foi tachar de “coxinha”, alienado, golpista e tudo o mais todos esses setores indignados e desencantados com os políticos e o regime. Esse desprezo incutido aproximou-os das garras do lobo. Isso mesmo.

Porém, nem tudo são flores para Bolsonaro. Primeiro, porque sua campanha se calçou em fake news; e estas têm sempre um lastro curto. Mas não somente! Há enormes contradições que já se expressam em seu mandato, que ainda nem iniciou. Há já um desgaste – obviamente que ainda bastante minoritário – de setores que já o olham com desconfiança. A garrafa de oxigênio dele é pequena, e parece saber disso. Ainda mais que seu crescimento é fruto de um ascenso, não de um retraimento das lutas. E por não ser um nacionalista burguês, como seria um governo fascista, mas um ultraliberal, que continuará as políticas anteriores, de maneira mais agressiva, fragilizando ainda mais a economia brasileira por meio das privatizações e de ataques dos direitos, a tendência é que os conflitos se acirrem e que sua imagem sofra um grande desgaste em pouco tempo.

Resumo da ópera: o governo de Bolsonaro, apesar de estar alinhado organicamente com as forças armadas, será frágil, débil e, ao que tudo indica, vacilante. Será igualmente muito repressor. Utilizará, se necessário, do auxílio das forças armadas para lograr êxito em sua tarefa: privatizar o país, retirar direitos históricos e garantir o lucro de setores da burguesia brasileira vinculada ao agronegócio e às grandes multinacionais, entregando as nossas riquezas. Nem que para isso tenha que fazer um genocídio nos campos, esgotar o meio ambiente e prender aos montes os manifestantes. Eis a sua vontade. A corrupção não estancará, portanto, pois é oriunda das relações capitalistas; a tendência é a inversa: aumentará. Para derrotá-lo, precisaremos de unidade. Contudo, não devemos esperar que a maioria das centrais sindicais, preocupadas que estão com interesses políticos outros e bastante distantes da classe, movimentem suas forças para alcançá-la. Eis a nossa principal tarefa neste período! Mas não somente: a médio prazo precisaremos organizar organicamente as massas rumo a um programa de poder socialista, pois somente o socialismo porá fim à barbárie instalada; os ataques não iniciaram com Bolsonaro e não findarão com ele. Por isso devemos desde já nos organizar e ir para a luta, sem medo, pois a vitória não é somente possível, mas necessária.


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Referências:

LENIN, Vladimir Ilich. Democracia burguesa e democracia operária. In: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap02.htm. Acesso em: 18/12/2018.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MENEZES, Jean. A Crise acentuada do capital: algumas considerações a partir de Marx, Engels e Trotsky. In: http://teoriaerevolucao.pstu.org.br/a-crise-acentuada-do-capital-algumas-consideracoes-a-partir-de-marx-engels-e-trotsky/. Acesso em: 18/12/2018.

PONTES, Romerito. Como a campanha de Bolsonaro manipula a informação. In: http://teoriaerevolucao.pstu.org.br/como-a-campanha-de-bolsonaro-manipula-a-informacao/. Acesso em: 18/12/2018.

ROMERO, Daniel. Marx sobre as crises econômicas do capitalismo. Trad. Diego Siqueira. São Paulo: Editora Sundermann, 2009.

SEVERINO, Victor. A igualdade que queremos. In: http://pstuflorianopolis.blogspot.com/2018/03/a-igualdade-que-queremos.html. Acesso em 18/12/2018.

TROTSKY, Leon. Aonde vai a França?. Trad. Gilson Dantas. Brasília: Kiron, 2012.

____________. Imperialismo e crise da economia mundial. Trad. Roberto Barros. São Paulo: Editora Sundermann, 2008.

____________. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. Trad. Mário Pedrosa. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.

Comentários

  1. Vocês da esquerda são uns bostinhas. Vivem escrevendo esses textãos e chorando. Mimimi do caralho tem que morrer no cano de uma arma seus filhos de uma puta.

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  2. Ótimas reflexões. Texto complexo, grande e repleto de assuntos. Poderia ter sido mais sucinto. Mas do mais está ótimo.

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