Breves considerações sobre o mito da democracia racial e a violência policial no RJ
Wagner Miquéias F. Damasceno
No
dia 03 fevereiro de 2013, o programa dominical Esquenta!,
da Rede Globo, tinha como eixo homenagear a cidade do Rio de Janeiro.
Como parte das homenagens, convidou o secretário
de segurança
pública,
José Mariano Beltrame, representante do Governo Estadual do
então governador, Sérgio
Cabral (PMDB),
para falar sobre as transformações que o estado
do RJ experimentava através da política de Unidades de Polícias
Pacificadoras (UPPs).
Numa apologia à política de segurança pública do governo estadual
e do governo federal, a apresentadora do Esquenta!, Regina
Casé, organizou um baile de debutantes com jovens de favelas
ocupadas por UPPs, como uma espécie de “coroamento” político de
um Rio de Janeiro pacificado.
A
plateia do ‘Esquenta!’ recebe caravanas de algumas das 28
comunidades pacificadas: Vila Cruzeiro, Santa Marta, Morro dos
Macacos, Complexo do Alemão e Parque das Missões. Os visitantes
participam do diálogo com o secretário de segurança e os
convidados Renê Silva, fundador da Voz da Comunidade (Complexo do
Alemão), e Diego, o menino que se entregou à polícia no dia da
ocupação do Complexo do Alemão e hoje é modelo e cinegrafista.
Policiais comentam como é o dia a dia e a convivência nas
comunidades pacificadas (MOTION TV, 2015).
No
palco, sete jovens de 15 anos eram acompanhadas por seus respectivos
“príncipes”: jovens policiais militares fardados. Regina Casé –
como uma espécie de mestre de cerimônias – fazia perguntas às
jovens, como essas: “Fabiana, você já sonhou em ter um príncipe
encantado? Como ele é? É parecido com esses da UPP?”, “Oi
Thainá, você está satisfeita com o seu príncipe?” (GLOBOTV,
2015).
Olhando em retrospectiva, à luz da tradição dos explorados e
oprimidos, é possível ver muita violência nisso tudo. Em primeiro
lugar, é significativa a simetria inversa entre as debutantes e os
policiais militares, no que tange à cor/raça1:
haviam sete jovens, sendo seis negras; e haviam sete policiais
militares, sendo um negro.
Em
segundo lugar, as jovens eram ofertadas como presas de uma guerra –
pretensamente vencida pelo Estado – contra os pobres e negros, em
pleno programa dominical! Assim, ao som de “Esse cara sou eu”,
de Roberto Carlos, o programa Esquenta!
oferecia
aos policiais militares do Rio de Janeiro essas jovens como um
espólio de guerra!
O
mito da democracia racial, mais uma vez, mostrava a sua eficácia na
exploração do povo negro: a ideologia do consenso e da negociação
entre oprimidos e opressores ocultava a violência classista e
racista da formação social brasileira.
À
guisa de exemplo, um ano depois, três policiais militares da UPP do
Jacarezinho foram presos por estuprarem moradoras, além de cometerem
agressões à usuários de crack2.
Desde que as UPPs foram implantadas, em 2008, há denúncias de
roubos, agressões e assassinatos ocorridos em favelas ocupadas
militarmente pelo Estado. Muitas delas, envolvendo policiais
militares.
Um
ano depois, em abril de 2014, o dançarino do Esquenta!,
Douglas Rafael da Silva Pereira, de 26 anos, mais conhecido como DG,
foi executado no morro do Pavão-Pavãozinho. Seis policiais
militares foram indiciados por suspeitas de envolvimento no crime.
Sua morte gerou inúmeros protestos no Rio de Janeiro e sua mãe,
Maria de Fátima, tornou-se símbolo da luta das mulheres negras e
trabalhadoras desse país, se recusando, inclusive, a se reunir com
o, então governador, Sérgio Cabral.
Vale
lembrar, ainda, a morte do – também dançarino – Gualter Rocha,
conhecido como Gambá, o Rei dos Passinhos, em janeiro de 2012. O Rei
dos Passinhos foi assassinado em circunstâncias, ainda hoje,
nebulosas e com fortes suspeitas de envolvimento policial3.
Para muitos, Gambá era homossexual, o que não é desprezível para
entender o crime. Gambá também se apresentava no programa de Regina
Casé, o Esquenta!.
A
"folclorização" da pobreza e de nossa negritude –
feita, exemplarmente, pelo programa Esquenta! – não elimina
a violência classista, homofóbica, racista e machista. Ao
contrário, parece, por vezes, escondê-la sob as brumas da
democracia racial.
E
foi seguindo esse roteiro costumeiro que, no dia 27 de abril do ano
passado, Regina Casé, no comando do Esquenta!, tentou
aplacar as contradições entre o seu
apoio ativo às
UPPs no Rio de Janeiro e a
homenagem póstuma ao
dançarino de seu programa, cuja
morte inflamou protestos
populares pelas
ruas
da Zona Sul do
Rio de Janeiro.
Ela
não estava sozinha nessa tarefa. À guisa de exemplo: a atriz
Fernanda Torres, uma semana depois, escreveria em sua coluna na Folha
de São Paulo que o que faltava para a Polícia Militar do Rio de
Janeiro era... Buda. Isso mesmo. Lógico que, antes de chegar a essa
conclusão tão abstrata, ela deixou a sua opinião – de forma bem
concreta, diga-se de passagem – sobre as UPPs: “Mas a UPP
não pode ser uma farsa. Trata-se do único plano concreto de
reintegração de áreas esquecidas pelo poder público surgido desde
que eu me conheço por gente. É preciso resguardar os locais de
confronto e avançar nos projetos sociais não repressores”
(TORRES, 2015).
O
jornalista, André Forastieri, em ácido artigo-resposta ao texto de
Fernanda Torres, assim escreveu, à época:
O que falta a Fernanda Torres
é a coragem moral para encarar isso. Essa turminha quer ser elite e
povão ao mesmo tempo. Ter segurança privada no condomínio e
frequentar o pagodinho da "comunidade". Amazônica intocada
e iPhone 5. Conexão Cantagalo-New York. Cybercapitalismo bancado
pelo tesouro nacional.
É uma no cravo e outra na
ferradura. Total solidariedade com os que sofrem, total subserviência
aos que infligem o sofrimento. É a melhor maneira de manter as
coisas exatamente como estão, mantendo privilégios e pose de
protesto. É a falta de caráter habitual da elite brasileira,
embalada em discurso de modernidade e multiculturalismo, lição que
aprenderam bem com os tropicalistas (2015).
Forastieri
seguiu, no mesmo texto, tratando, agora, da declaração de Regina
Casé no Programa Esquenta! que homenagearia o dançarino DG:
É um primor de desconversa o
discurso lacrimoso de Regina Casé sobre DG, no Esquenta. Consegue
protestar contra a violência, sem protestar contra ninguém. “Temos
que parar tudo e tomar consciência do tamanho da barbárie… a
gente conseguiu parar e tomar consciência para que alguma coisa
mude! Para que tragédias como essa não continuem acontecendo com
milhares de jovens das periferias”.
Nem um pio contra a PM. As
UPPs. O governador. O prefeito. O tráfico. As milícias. Nada contra
ninguém. Nada sobre o eterno mal uso do dinheiro público, que vem
de impostos que todos pagamos, os pobres muito mais que os ricos
[…] A morte de DG,
segundo Regina e Fernanda, é um crime sem culpados. Choram
revoltadas: neste Brasil, somos todos vítimas! Não somos não. Uns
brasileiros cometem os crimes. Alguns reagem. E outros são
cúmplices. (2015, grifo nosso).
No
dia 20 de novembro do ano passado, Maria de Fátima, mãe de DG,
participou de uma atividade pública, na
Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça (SERNEGRA).
O deputado federal do
PSOL, Jean Wyllys, também participava da mesma mesa redonda, no
SERNEGRA. Jean Wyllys, na Semana da Consciência Negra, havia saído
em defesa da minissérie “Sexo e as Negas”,
de Miguel Falabella, e
que recebia inúmeras críticas de parte dos movimentos negros4.
Nessa mesa,
Jean Wyllys – investindo-se da autoridade acadêmica em matéria de
Comunicação Social – rebateu
as críticas ao programa Esquenta!
e à Regina Casé, relativizando-as da seguinte maneira:
DG,
o filho de Maria de Fátima trabalhava num programa de televisão
chamado Esquenta!, que
é alvo de uma série de críticas. As pessoas acusam a Regina Casé
de racista, de estereotipar a favela, de estereotipar a periferia, em
artigos distribuídos nas redes sociais. Talvez, Maria de Fátima e
DG – se fosse dado a ele a chance de falar – ele [sic] não
tivesse a mesma opinião sobre o programa da Regina Casé, porque os
discursos são ambivalentes. Eu sou professor de Teoria da
Comunicação. Eu tenho mestrado na área dos Estudos Culturais, no
Instituto de Letras e Linguísticas, e parei meu doutorado em
Antropologia do Consumo. Eu não falo de achismo. A comunicação é
feita de endereçamento e recepção. Eu to falando como teórico da
comunicação, como alguém
dedicado: a comunicação é feita de endereçamento e recepção. O
que que isso quer dizer? Quando a gente produz um discurso, a gente
pode ter a intenção de produzir determinados efeitos [interrupção]
[…] essa recepção está
mediada. Há uma mediação cultural na recepção, e essa recepção
é mediada por diferentes histórias de vida, e por diferentes
posições de sujeitos (SERNEGRA,
2015).
Entretanto,
quando foi perguntada sobre a continuidade do caso DG, Maria de
Fátima fez questão de expressar sua crítica ao programa, e foi
além: criticou, duramente, a Rede Globo e a apresentadora Regina
Casé, ao falar sobre a preparação
e os bastidores do programa Esquenta!
do dia 27 de abril5.
Segundo Maria de Fátima, ela
foi impedida de falar que o filho fora assassinado e que policiais
militares seriam responsáveis.
Bom,
eu vou até responder em pé, com muito prazer que você tocou no
assunto e eu venho trazer pra vocês. A mídia usou, todo tempo, a
imagem do meu filho. 72 horas da morte dele, do enterro, houve um
convite, praticamente me arrancaram da minha casa, me levando pra TV
e limitaram o que eu devia falar, senhora Regina Casé e a produtora
do programa tato
longo.
Ela disse pra mim que eu só deveria responder o que me perguntassem
(SERNEGRA, 2015).
Nessa
quinta-feira, 02 de abril, Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos,
morreu alvejado por um tiro de fuzil na cabeça, no Complexo do
Alemão. Sua mãe, a trabalhadora doméstica, Terezinha Maria de
Jesus, de 40 anos, afirma que fora um policial militar do Batalhão
de Choque que matou o seu filho6.
Eduardo morreu na porta de casa, e mais uma mãe perdeu seu filho nas
favelas do Rio de Janeiro.
Sua
morte é repleta de dor e significados, especialmente quando levamos
em conta – dentre tantas coisas – a tentativa reacionária de
dezenas de parlamentares e empresários da bala de reduzirem a
maioridade penal no país.
Quando
se fala em genocídio da população negra, no Brasil, não há nada
de metafórico nisso. O Estado, além de exterminar as crianças e os
jovens negros, pretende encarcerá-las ainda mais cedo.
No
dia seguinte, a população pobre e negra do Complexo do Alemão se
insurgiu contra mais esse caso de barbárie e tomou as ruas e ruelas
pedindo paz e justiça, mas, foi, mais uma vez, reprimida por
policiais militares.
Uma
tragédia racial e social
No
estado do Rio de Janeiro, a repressão aos trabalhadores e ao povo
negro expressam uma verdadeira tragédia social e racial,
especialmente quando levamos em consideração que, historicamente, a
maior parte dos praças (soldados, cabos e sargentos) são negros e
oriundos, muitas vezes, das periferias e dos morros do estado.
Consequentemente, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro é a
instituição pública do estado que mais emprega negros no RJ:
[…] a PM é, no estado do
Rio de Janeiro, a principal empregadora de fluminenses, com cerca de
39.000 funcionários ativos. Também [...] ela é a principal
empregadora de negros e pardos entre as agências públicas do
estado. Em 2000, quando iniciamos a pesquisa e obtivemos dados
estatísticos da PM, constatamos que cerca 60% dos servidores eram
afrodescendentes (NOBRE, 2008, p. 14).
A
contradição social e racial é permanente. Segundo Nobre, a crise
de “identidade militar negra” acomete também os oficiais
militares negros:
Em outras palavras: o fato de
ser oficial, ter curso superior e brilhar carreira não invalida o
policial de ser visto como um individuo inferior em função do
racismo (ainda marcante em nossa formação social) e do estigma da
profissão. Em conversa informal, um oficial chegou a definir o
policial como “o lixeiro da história”, devido ao fato dele ser
solicitado sempre para fazer todos os trabalhos “sujos” da
sociedade (2008, p. 237).
Numa
instituição de caráter militar, não-unificada, e que impede a
livre organização dos policiais em formas sindicais, as tensões
internas entram, permanentemente, em choque com as demandas da
sociedade civil, especialmente dos trabalhadores e do povo negro.
Mas, como o próprio autor relata:
Há também os momentos onde a
cultura corporativa desponta como marco fundamental entre eles e
anula temporariamente a crise de enfrentamento entre os grupos
ideológicos dentro da PM, ou seja, é quando todos estão em risco
de vida, de trabalho ou de ameaças pelos “de fora”. É neste
momento no qual a “identidade negra militar” se transforma na
“identidade única da PM”, de outro modo, é quando todos se
tornam “azuis”, uma referência a cor empregada no uniforme da
corporação. Às vezes, os “ azuis” apontam que a mídia
prejudica a imagem da corporação e que os policiais são também
vítimas da insegurança pública. No entanto, as ONGs (Organizações
Não Governamentais) e demais grupos progressistas lhe negam os
benefícios dos direitos humanos, segundo seus argumentos para
contrabalançar a pressão da sociedade civil por uma polícia cidadã
(NOBRE, 2008, p. 238, grifo nosso).
Mas
essa “identidade única da PM” é incapaz de resistir às
inúmeras pressões sociais e raciais, especialmente em momentos de
crise econômica – que é, sempre, crise social. A história é
repleta de momentos em que a disciplina militar – com suas cadeias
ideológicas – se rompe e os agentes repressores se dividem
politicamente, atraídos pelo magnetismo das classes sociais
polarizadas.
Recentemente,
um vídeo de 1min44seg7,
que mostrava um momento de descontração num quartel militar do
Exército teve mais de 200 mil visualizações na internet. Trata-se
de um pequeno video, aparentemente banal, mas que transmite uma
mensagem poderosa: a desalienação entre os soldados das forças
repressivas.
As
forças armadas são instituições repressoras por excelência,
estando sempre a serviço dos interesses dos poderosos. Essas
instituições são fundamentais para os capitalistas que guerreiam
por mercados mundo afora, mas que se protegem nas fronteiras de seus
Estados-nações. São, historicamente, machistas, racistas e
homofóbicas. Entendendo isso, o video se torna, para nós, ainda
mais prenhe de sentidos: os soldados, começam a batucar e improvisam
uma roda de samba, dois deles começam a sambar alegremente, ao som
de muitas risadas. Naquele momento, a norma – que parece
terminantemente – internalizada pelos soldados, através de meses,
ou anos a fio, dá lugar à extravasão humana.
Por
um breve instante, praças dançam alegremente refletindo sua origem,
sua cultura, seu pertencimento e sua humanidade; nos termos de Marx,
eles refletem – ainda que num lampejo – sua generalidade.
Muitas
pessoas compartilharam esse video e chamavam os jovens soldados de
"afeminados" e proferiam insultos homofóbicos. Aludiam a
isso como um indicativo da falência dessa instituição militar.
Nada mais preconceituoso e equivocado.
Com
o aprofundamento da polarização social – algo inevitável em
tempos de crise do capitalismo – pessoas como essas podem passar,
com armas em punho, para o lado dos revolucionários. A corrosão
dessas instituições repressoras soará como o anúncio do ocaso da
burguesia (machista, racista e homofóbica) da sociedade brasileira.
Referências
FORIASTERI, André.
O que falta a Fernanda Torres, oito mil assassinatos depois de DG:
não é Buda. Disponível em:
<http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2014/06/03/o-que-falta-a-fernanda-torres-oito-mil-assassinatos-depois-de-dg-nao-e-buda/>.
Acesso em: 04 abr 2015.
GLOBOTV. Baile do
Esquenta promove festa de debutantes em alto estilo. Disponível
em:
<http://globotv.globo.com/rede-globo/esquenta/v/baile-do-esquenta-promove-festa-de-debutantes-em-alto-estilo/2356888/>.
Acesso em: 04 abr 2015.
JEAN
WYLLYS. Jean Wyllys fala sobre o seriado “Sexo e as Negas”.
Disponível em:
<https://www.youtube.com/results?search_query=jean+wyllys+sexo+e+as+negas>.
Acesso em: 04 abr 2015.
MOTION TV. ESQUENTA!
No aniversário do Rio a plateia do programa recebe caravanas de
algumas das 28 comunidades pacificadas. Disponível em:
<http://www.webtvbrasileira.com/…/esquenta-no-aniversario-do…>.
Acesso em: 03 abr 2015.
NOBRE, Carlos. O
negro na Polícia Militar: Cor, Crime e Carreira no Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade
Cândido Mendes, 2008.
TORRES, Fernanda.
Buda. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernandatorres/2014/05/1448494-buda.shtml>.
Acesso em: 03 abr 2015.
SERNEGRA.
Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=u9Ha0uNGG1o#t=7439>.
Acesso em: 04 abr 2015.
__________________________________
1Entendemos
que a auto declaração é a maneira mais acertada na definição de
ser negro. Mas, não
obstante, nesse caso, tomo por negros e
negras apenas aspectos
fenotípicos.
2Ver:
http://goo.gl/fL0HwQ.
6Ver:
http://goo.gl/t5e5XY.
__________________________________
Leia também:
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