Notas "Sobre a questão da Moradia", de Friedrich Engels

Wagner Miquéias F. Damasceno

Sobre a questão da moradia, de Friedrich Engels, foi publicada, pela primeira vez no Brasil pela Boitempo Editorial. Trata-se de uma obra primorosa, cujo objetivo é responder aos artigos de Arthur Mülberger, um autor de inspiração proudhonista que, embora sendo um médico, nada mais fez do que oferecer charlatanice social em forma de ensaios sobre a "questão da moradia" na Alemanha, em fins do séc. XIX.

O livro é extremamente atual por tratar do tema da "escassez das moradias" inserindo-o na análise da sociedade capitalista como decorrência do seu modo de produção calcado na exploração do trabalho. Engels, dentre tantas coisas, destacava: "Uma coisa é certa, porém: já existem conjuntos habitacionais suficientes nas metrópoles para remediar de imediato, por meio de sua utilização racional, toda a real 'escassez de moradia'." (2015, p. 56).

É, também, extremamente atual por apresentar a crítica de Engels às concepções pequeno-burguesas de inspiração em Pierre-Joseph Proudhon, mostrando que o apego à "justiça eterna" e a legalidade, pavimentam um caminho reacionário, onde a solução para a questão da moradia era de que cada trabalhador deve ser proprietário da sua casa. Esta foi a solução dada, também, por A. Mülberger. Nas palavras de Engels:

Só mesmo o burguês põe em dúvida que a condição geral dos trabalhadores tenha piorado em termos materiais desde a implementação da produção capitalista em grande escala. Mas isso é razão suficiente para olharmos com nostalgia para o passado, para as panelas (também bastante minguadas) do Egito, para a pequena indústria rural que criou apenas espíritos servis ou até para os “selvagens”? Pelo contrário. Só o proletariado produzido pela grande indústria moderna, liberto das correntes herdadas, inclusive das que o prendiam à sua terra, e arrebanhado nas metrópoles é capaz de levar a cabo a grande transformação social que porá fim a toda espoliação e dominação classistas. Os velhos tecelões rurais, com sua casa e sua lareira, jamais teriam sido capazes disso, jamais teriam sequer formulado uma ideia dessas, e muito menos querer sua execução (2015, p. 47).

O desenvolvimento das forças produtivas criou uma classe social expropriada dos meios de produção. Esse fato histórico, tornado condição, anuncia para toda a sociedade civil que os interesses do proletariado coincidem com os interesses de toda a sociedade civil. Nas palavras de Marx, ainda em 1844: “Quando o proletariado exige a negação da propriedade privada, ele apenas eleva a princípio da sociedade o que a sociedade elevara a princípio do proletariado, aquilo que nele já está involuntariamente incorporado como resultado negativo da sociedade (2013, p. 162).

O elogio nostálgico da pequena-burguesia à pequena produção e à propriedade individual é o elogio a um mundo sem volta. Seja porque se trata de uma representação idealizada, seja porque “o melhor dos mundos proudhoniano foi esmagado ainda em botão pelo pé do desenvolvimento industrial em progresso, que há muito aniquilou o trabalho individual em todos os ramos da grande indústria e, dia após dia, continua a aniquilá-lo nos ramos menores e minúsculos” (ENGELS, 2015, p. 47).

n'O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Marx, uma breve exposição sobre a pequena burguesia e a criação do Partido Social Democrata, uma coalizão de pequeno-burgueses e trabalhadores criada após as jornadas de junho de 1848 na França, que nos parece sempre interessante.

Não há partido que exagere mais os meios de que dispõe, nenhum que se iluda mais levianamente sobre a situação do que o democrata. O fato de um segmento do exército ter votado na Montanha bastou para convencê-la de que o exército inteiro se rebelaria junto com ela. […] por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses de duas classes se embotam de uma só vez, o democrata tem a presunção de se encontrar acima de toda e qualquer contradição de classe. Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo (2011, p. 67, grifo nosso).

Para Lukács, “a burguesia e o proletariado são as únicas classes puras da sociedade. Isto é: somente a existência e a evolução dessas classes repousam exclusivamente na evolução do processo moderno de produção, e não se pode representar um plano de organização da sociedade em seu conjunto a não ser a partir de suas condições de existência” (1979, p. 31). Lukács utiliza esse mesmo trecho, escrito por Marx, para desenvolver essa sua afirmação, e assim prossegue:

[a pequena burguesia] Desviar-se-á, em sua ação, de todas as decisões cruciais da sociedade e deverá, necessária e alternativamente, lutar, e sempre inconscientemente, por uma ou outra das direções da luta de classes. Seus próprios objetivos, que existem exclusivamente na sua consciência, tomam, necessariamente, formas sempre mais vazias, sempre mais destacadas da ação social, puramente “ideológicas” (1979, p. 32).

Por não possuir um projeto próprio para a sociedade, a pequena burguesia sempre manifesta, do ponto de vista político, soluções reacionárias. Isto é, apresenta saídas políticas que representam, em última instância, o lugar transitório que ocupa no seio da sociedade capitalista. Engels é categórico a esse respeito e censura o médico proudhonista que chora copiosamente e lamenta “a expulsão dos trabalhadores de sua casa e de sua lareira, como se tivesse sido um grande retrocesso, quando de fato foi a primeiríssima condição de sua emancipação espiritual”:

[…] foi justamente por meio dessa Revolução Industrial que a capacidade de produção do trabalho humano atingiu um nível tão elevado que – pela primeira vez desde que existem seres humanos – está dada a possibilidade de produzir, com uma distribuição sensata do trabalho entre todos, não só o necessário para o consumo farto de todos os membros da sociedade e para juntar um fundo de reserva polpudo, como também para proporcionar a cada qual um tempo de lazer suficiente não só para preservar aquilo que merece ser preservado da cultura historicamente transmitida – ciência, arte, formas de relacionamento etc. –, mas também para convertê-lo de monopólio da classe dominante em bem comum de toda a sociedade, aprimorando-o cada vez mais. Nisso reside o ponto decisivo” (2015, p. 48).

Engels faz questão de qualificar como um ponto decisivo o domínio do proletariado sob a produção como condição para a distribuição sensata do trabalho e da conquista humana do seu tempo. Para o comunista alemão, somente uma revolução social poderia solucionar a questão da moradia, suprimindo o antagonismo entre cidade e campo.

Naturalmente, isso só poderá ser feito mediante a expropriação dos atuais possuidores, ou então mediante a acomodação, nessas casas, de trabalhadores sem teto ou trabalhadores aglomerados nas moradias atuais; assim que o proletariado tiver conquistado o poder político, essa medida exigida pelo bem-estar público terá sua execução tão facilitada quanto outras expropriações e acomodações feitas pelo Estado atual (2015, p. 56).

Trata-se de uma solução profundamente diferente daquela dada por Proudhon e A. Mülberger.

Além disso, Engels nos apresenta ao Dr. Emil Sax, um malfadado ideólogo burguês que concebia a “economia social” como uma teoria da aplicação da economia nacional às questões sociais cuja “leis brônzeas”, no quadro da ordem social atualmente vigente – isto é, capitalista – poderia “alçar as assim chamadas [!] classes despossuídas ao nível das classes possuidoras” (apud ENGELS, 2015, p. 69).

Como o próprio Engels nos fala, “é da essência do socialismo burguês o desejo de eliminar todos os males da atual sociedade, mantendo simultaneamente seus fundamentos” (2015, p. 70). Em consequência, para o Dr. Sax, a solução para os males sociais do proletariado se encontrariam na resolução da questão da moradia, já que, melhorando as moradias dos trabalhadores, melhorar-se-ia a miséria física e espiritual desta classe.

Expressando, além do rigor científico, a moral de quem se posicionara decididamente ao lado do proletariado, Engels repreende o moralismo burguês do Dr. Sax que, ao fim ao cabo, tentava imputar aos trabalhadores a culpa por sua condição de miséria:

O dinheiro que os trabalhadores “esbanjam com aguardente e tabaco”, a “vida nos bares com todas as suas consequências deploráveis, que, como chumbo, volta sempre a afundar a classe trabalhadora no lodo”, de fato pesa no estômago do senhor Sax como chumbo. O senhor Sax só não pode saber que, nas condições vigentes, o alcoolismo entre os trabalhadores é um produto necessário de sua situação de vida, tão necessário quanto o tifo, o crime, os insetos, os oficiais de justiça e outras enfermidades sociais, tão necessário que é possível estimar previamente a quantidade média dos que incorrem no alcoolismo. Aliás, como já dizia o meu velho professor do fundamental, “O povão vai ao boteco e os distintos frequentam o clube”, e como estive em ambos posso atestar que isso está correto.

Em suma, para o Dr. Sax, era da natureza humana ter uma posse fundiária, pois “com ela, o ser humano adquire um esteio seguro; ele, por assim dizer, fixa firmemente suas raízes e toda economia [!] tem nela sua base mais duradoura […] Quem for feliz a ponto de chamara tal posse de sua alcançou o patamar mais elevado imaginável da independência econômica” (apud ENGELS, 2015, p. 75). Assim, para o Dr. Sax, o trabalhador se tornaria capitalista mediante a propriedade de sua casinha própria e estaria resolvida a “questão da moradia”. Mas, nada mais equivocado.

O capitalismo de nosso trabalhador possui ainda outro aspecto. Suponhamos que, numa determinada região industrial, seja regra que cada trabalhador possua sua própria casinha. Nesse caso, a classe trabalhadora daquela região mora sem custo; as despesas referentes à moradia não entram mais no valor de sua força de trabalho. No entanto, “com base nas leis brônzeas da teoria da economia nacional”, toda e qualquer redução dos custos de geração da força de trabalho, isto é, toda e qualquer diminuição permanente no custo de vida do trabalhador significa um rebaixamento do valor da força de trabalho e, por conseguinte, acaba acarretando uma redução do salário. Portanto, o salário se reduziria, em média, no mesmo montante poupado com o valor médio do aluguel, isto é o trabalhador pagaria o aluguel por sua própria casa, mas não, como antes, em dinheiro entregue ao dono da casa, e sim em forma de trabalho não pago ao dono da fábrica para quem ele trabalha. Assim, todavia, as economias que o trabalhador investe em sua casinha de certo modo se converteriam em capital, mas não em capital para ele, e sim para o capitalista que lhe dá emprego (2015, p. 77).

E é assim, posto que o capital é uma relação social e a extração de mais valia é repartida de diferentes maneiras entre diferentes capitalistas e proprietários de terra. 
 
A pequena indústria na Alemanha, baseada na casinha com hortinha, rocinha e o tear, prenderam o trabalhador ao método ultrapassado da produção individual e do trabalho manual, permitindo que o capitalista, através da concorrência, descontasse do preço da força de trabalho aquilo que a família conseguia extrair de sua hortinha ou terreninho (ENGELS, 2015). Consequentemente, 
 
os trabalhadores são obrigados a aceitar qualquer salário por unidade produzida porque, caso contrário, não recebem absolutamente nada e não podem viver somente do produto de sua atividade agrícola e porque, em contrapartida, justamente esse cultivo e essa posse da terra os prendem ao lugar, impedindo-os de buscar outra ocupação (ENGELS, 2015, p. 33).

Há de se pensar na atualidade das análises de Engels. Afinal, numa conjuntura nacional onde 95% dos empregos formais criados entre 2003-2013 pagavam até 1,5 salários mínimos, e o aumento da produção e distribuição de alimentos transgênicos por parte de grandes conglomerados, bem como, a concentração de terras nas mãos de pouquíssimos capitalistas, impõem a máxima unidade entre operários e trabalhadores do campo para a superação do capitalismo, a nova tendência onírica entre os setores médios e pequeno-burgueses é ter sua própria casinha, para criar sua hortinha orgânica e, quem sabe, um roçado… Tudo isso, de forma atomizada e, até, refratária às lutas coletivas em curso no país. Para esses setores – que, do ponto de vista político, são seduzidos pelo discurso reformista – Engels alerta: as chamadas “reformas sociais” que resultam em economia ou barateamento dos víveres dos trabalhadores ou se generalizam e são seguidas de um rebaixamento correspondente dos salários, ou então permanecem como experimentos isolados, provando que sua execução em grande escala é incompatível com o capitalismo (2015).

Para adoçar ouvidos de trabalhadores e capitalistas, o Dr. Sax ainda defendia que os trabalhadores deviam se tornar donos de suas casas no interesse, também, dos capitalistas. Assim, a paz social, seria possível com a condição de que o proletariado se resignasse ante os capitalistas.

[…] não só a classe trabalhadora, como também toda a sociedade tem o maior interesse em ver o maior número possível de seus membros ao chão […] a posse fundiária […] reduz o número dos que oferecem resistência à dominação da classe possuidora […] Todas as forças secretas que inflamam o vulcão chamado questão social, ardendo sob nossos pés, a amargura proletária, o ódio […] as perigosas confusões conceituais […] tudo isso se dissipa como a névoa diante do sol da manhã, quando […] os próprios trabalhadores passam desse modo a fazer parte da classe dos possuidores (apud ENGELS, 2015, p. 78).

O comunista alemão não deixa margens para dúvidas: a questão da moradia só poderá ser resolvida quando revolucionarmos a sociedade a ponto de conduzi-la à supressão da oposição entre cidade e campo. “Ocorre, portanto, o contrário do que afirma o senhor Sax: não é a solução da questão da moradia que leva simultaneamente à solução da questão social, mas é pela solução da questão social, isto é, pela abolição do modo de produção capitalista que se viabiliza concomitantemente a solução da questão da moradia” (2015, p. 80).

Sobre a questão da moradia é, nada menos, do que indispensável para os marxistas. Infelizmente, o texto de orelha feito por Guilherme Boulos para Sobre a questão da moradia não faz jus às conclusões da obra. Pior: imputa à Engels uma solução que o autor não deu! Boulos afirma que, para Engels, o problema (da questão da moradia) não é de falta quantitativa de moradias, mas de distribuição! Para tentar comprovar – marotamente – essa sua afirmação, o coordenador nacional do MTST segue com a constatação feita por Engels (e que citei na 1ª página) de que o número de conjuntos habitacionais, nas metrópoles, é suficiente para remediar, de imediato, toda a real “escassez de moradia”.

Numa obra onde Engels destrói com as charlatanices pequeno-burguesas de Mülberger e Proudhon, a Boitempo destina a redação da orelha desta obra inédita a um tipo semelhante. Li e reli o livro no intuito de encontrar essa afirmação de Engels de que o problema da questão da moradia era de distribuição. Contudo, parafraseando o próprio Engels: “Não encontro a passagem. Ela não existe” (2015, p. 133). A palavra distribuição aparece, apenas para designar “a possibilidade de produzir, com uma distribuição sensata do trabalho entre todos” aberta pela Revolução Industrial (p. 48) e, em passagem similar, onde Engels diz que “especular sobre como uma futura sociedade regulará a distribuição da comida e da moradia leva diretamente à utopia (p. 138).

É de praxe do reformismo atribuir os problemas do capitalismo à distribuição, seja ela de renda, moradia, direitos etc. Assim, lançando luz sobre esses “problemas”, ocultam das massas a real necessidade de revolucionar a sociedade para que os trabalhadores controlem a produção social. Numa sociedade produtora de mercadorias, diagnosticar que o problema é a distribuição e não o modo que essa sociedade produz dá margem às prescrições políticas mais tolas e reacionárias. É como se pedisse que tratássemos de uma pneumonia assoando o nariz. Não dá.

Sobre a questão da moradia é obra preciosa para todos aqueles que desejam compreender mais sobre o tema da urbanização, da desigualdade social e da questão da moradia nas sociedades capitalistas. E é fonte de inspiração, sobretudo, para aqueles que pretendem transformar essa ordem social injusta e espúria.

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Referências
ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. São Paulo: Boitempo, 2015.
LUKÁCS, Gyorgy. A Consciência de Classe. In: VELHO, Otávio; PALMEIRA, Moacir; BERTELLI, Antônio (Org.) Estrutura de classes e estratificação social. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

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