Sobre a destruição de obras de arte pelo Estado Islâmico

Cecília Toledo, da LIT-QI

Há alguns dias, uma imagem chocou o mundo: militantes do Estado Islâmico, munidos de marretas, destruíam obras de arte, estátuas, afrescos, pinturas no Museu da Civilização de Mossul.

Essa atitude deve ser condenada pela classe trabalhadora mundial, de conjunto, como um crime contra a humanidade. Inclusive os sindicatos, partidos e outras organizações da classe, no mundo inteiro, deveriam escrever moções de repúdio e fazer protestos. Porque as obras de arte, sejam quais forem, são um patrimônio da classe trabalhadora mundial, porque foram todas produzidas, de uma forma de outra, a troco de seu sangue, suor e lágrimas.

Poucos dias depois do crime em Mossul, outras esculturas foram destruídas no norte do Iraque – relíquias da ancestral cidade de Nimrud. A Unesco protestou, exigindo que seja feito “o que for preciso” para  impedir a pilhagem e a destruição de patrimônio histórico. “Esse foi mais um ataque contra o povo iraquiano, recordando-nos de que nada está a salvo do extermínio cultural em curso no país”, disse Irina Bokova, diretora-geral da Unesco na sede da ONU em Nova York. (O Estado de S.Paulo, 7/3).


Islamismo não admite imagens

Não se pode ver esse fato, a destruição de obras de arte, de forma mecânica. A obra artística, apesar de ter uma autonomia em si mesma, quanto à estética, ao estilo, às  formas, ela é sobretudo uma produção humana, sua autonomia é relativa à humanidade, ela espelha os  anseios, as paixões, as crenças, os desejos e estágios do desenvolvimento humano. Isso significa dizer que a arte não é algo sagrado, intocável, que transcende aos homens, que é independente deles e não vive por si. A arte verdadeira é a que nasce de dentro dos homens e a eles torna-se vinculada para sempre; representa um momento de humanidade e aspira a eternizar-se como humanidade. 

Isso significa também entender quem são os homens que hoje as estão destruindo no Iraque e na Síria e porque o estão fazendo. Não se pode ver a destruição das obras de arte como algo desvinculado do islamismo, em especial do fundamentalismo islâmico, que é defendido pelo Estado Islâmico. A religião islâmica não concebe, entre seus preceitos, a adoração de estátuas, sejam elas quais forem. Isso, certamente, não é justificativa para nada, mas como religião monoteísta, o islamismo não cultua os santos e seu único deus, Alá, jamais foi concretizado em imagens, sejam pinturas ou estátuas. As imagens feitas pelos homens em geral seguem os padrões físicos humanos, e para o islamismo, isso é uma verdadeira “humanização” de seu deus, ou seja, seu rebaixamento. Por isso, jamais, em tempo algum, Alá foi retratado em imagens, e a ousadia do jornal Charlie Hebdo, publicando caricaturas de Alá, representou uma ofensa sem perdão para os jihadistas. Assim, a existência dessas obras significa para a religião islâmica e, sobretudo, para os fundamentalistas, uma forma de profanação; e não a sua destruição seria uma profanação.

Por outro lado, os jihadistas do Estado Islâmico têm como método terrorista divulgar imagens espetaculares e assustadoras das barbaridades que cometem, como as decapitações, individuais ou em massa, para causar medo, impacto e transmitir uma idéia de força, e não seria diferente com as obras de arte.
 

A guerra não perdoa nada

A destruição de obras de arte não é algo novo; uma parte da história da humanidade vem sendo aniquilada com o processo de guerras permanentes em todo o Oriente Médio, região considerada o berço da humanidade e, portanto, com muitas obras artísticas que, de uma forma ou de contra, contribuem para narrar essa história; registros preciosos da vida humana nas épocas que nos precederam e fundamentais para o conhecimento de nossa história estão desaparecendo.

Muita história do mundo vem virando escombros sob bombardeios, invasões, matanças. Essa é apenas uma das muitas desgraças provocadas pelas guerras.  Alguns dos fatos mais recentes ocorreram no Afeganistão, em 2001, quando o grupo fundamentalista Taleban ordenou a demolição de estátuas dos Budas de Bamlyn, construídas nos séculos III e IV. Em 2003, no Iraque, cerca de 170 mil obras do Museu Nacional foram saqueadas e destruídas por atiradores do Exército iraquiano. Em 2001, no Egito, o Museu do Cairo, que abriga a maior coleção de obras de arte egípcias da Antiguidade, foi invadido; duas múmias tiveram as cabeças arrancadas e relíquias com 2,5 mil anos foram danificadas. Em 2011, na Síria, 24 áreas consideradas Patrimônio Cultural da Humanidade foram destruídas.

Isso não ocorre só no Oriente Médio. Todas as grandes guerras mundiais destruíram obras artísticas; bombardeios sobre as cidades européias transformaram em cinzas edifícios históricos, afrescos e monumentos. A destruição de Varsóvia, a capital da Polônia, na Segunda Guerra, foi um fato da maior magnitude, e obrigou a população a reconstruir a cidade inteira, seguindo o plano original dos engenheiros e arquitetos que a haviam planejado.  As marcas da destruição de Sarajevo, na Bósnia, ainda estão vivas pelas ruas de uma das cidades mais culturais do mundo.

A arte não é somente destruída por bombas e marretas; é também roubada, saqueada, seqüestrada, e isso significa, igualmente, ataque contra um patrimônio da humanidade. O Museu Nacional Britânico, em Londres, é um dos que abriga o maior número de obras artísticas roubadas pelos imperialistas ingleses de suas colônias, como Índia e Egito. Os museus e bibliotecas norte-americanos guardam as maiores coleções do mundo de manuscritos históricos devidamente surrupiados pelos “nobres” imperialistas, que os salvaram das mãos dos “bárbaros” das colônias. Obras de arte em ouro e prata adornam os palácios da monarquia espanhola, roubadas dos indígenas da América.


A hipocrisia da Unesco e do imperialismo

A Unesco protestou contra a ação dos jihadistas, exigindo que o governo do Iraque proteja as obras. Na verdade, por mais justa que pareça, essa exigência por parte da Unesco soa mais como saudação à bandeira e pura hipocrisia, vindo de um órgão do imperialismo, e exigindo que um governo burguês, corrupto e explorador como o do Iraque se preocupe com obras de arte.

Por mais espantoso que seja o ato dos jihadistas, não mais espantoso e indignante que a ação dos colonizadores, dos imperialistas, do nazismo, das bombas inglesas, americanas, alemãs, japonesas, italianas e francesas nas guerras mundiais.  O espantoso e indignante são as guerras, os massacres, o colonialismo, o saque que o capitalismo em seus primórdios, no processo de acumulação primitiva, e a burguesia imperialista continua fazendo até hoje. A destruição das obras de arte – quando não ocorre de forma aleatória, sob bombardeios ou invasões - significa a destruição de uma parte dos homens, de algo que para eles expressa o modo de viver, sentir e pensar em determinadas épocas. Porque a arte não é autônoma em relação à vida humana. O fato de obras de arte serem destruídas durante as guerras é um sintoma do poder destruidor das guerras, de sua podridão.

Por isso, não é a preservação das obras de arte que deve ser exigida em primeiro lugar, mas sim, o fim das guerras, dos saques, da ação do imperialismo sobre os povos. Em nenhuma guerra já ocorrida ou em ocorrência, as obras artísticas permaneceram de pé. Elas caem conforme os homens caem.  A criação humana, seja ela qual for, é inerente aos homens e vai para o abismo conforme a humanidade ruma nesse sentido.
Se a atitude dos jihadistas, destruindo obras de arte, é um crime contra a humanidade, a atitude do imperialismo e dos governos burgueses em relação à arte é tão criminosa quanto. Por isso, os protestos da Unesco em defesa da arte soam como hipocrisia e acobertamento de uma ausência total de ação por parte do organismo para preservar obras de  arte no mundo inteiro.


Autonomia da arte: relativa

A arte tem uma linguagem própria, regras próprias, mistérios próprios. Tudo isso lhe confere sim uma certa autonomia. Mas apenas relativa. A arte é parte integrante da vida humana, e a arte verdadeira sofre junto com os homens, sofre também as vicissitudes da  vida. Brecht dizia, com outras palavras, que numa sociedade em decadência, a arte, para ser verdadeira, precisa refletir também essa decadência. Mas, ao menos que ela queira ser infiel à sua função social, a arte precisa mostrar o mundo como passível de ser mudado. E ajudar a mudá-lo.

Que sentido teriam obras de arte em pé, impávidas, íntegras e limpas, enquanto os homens que as fizeram ou aqueles que as devem apreciar estão caídos, feridos e maltratados, alienados? Seguramente, as estátuas e esculturas destruídas pelos jihadistas no Iraque, na Síria, no Afeganistão, são relíquias que estendem uma ponte entre o presente e o passado da humanidade; são expressões do poder criativo dos homens em todos os tempos, e por isso, não deveriam ser destruídas. São momentos de humanidade, como dizia Marx, que perduram, e aí reside o poder da arte de sobrepor-se ao momento histórico e exercer um fascínio permanente; a expressão do desejo dos homens de permanecer aqui, de eternizar o momento em que viveram, sofreram e foram felizes; a obstinação humana em superar a inexorável passagem do tempo.

A destruição das obras pelas marretas jihadistas hoje não demonstra a destruição de objetos autônomos, de mercadorias que têm um valor em si, independente da vida humana, que foram feitas e existem para serem expostas em museus ou vendidas pelos capitalistas. Não são tampouco objetos que trazem em si os grandes valores humanos, cuja destruição significaria a própria destruição desses valores. Se fosse assim, a ação dos jihadistas teria um sentido muito mais profundo.

Mas não é assim. Com suas marretas, eles acham que estão destruindo a cultura humana ou a cultura ocidental ou uma cultura determinada, que estão apagando da face da Terra o sentir e o pensar dos homens e de uma civilização, para substituí-los pela civilização islâmica, pela sharia e suas leis retrógradas e de sacrifício de qualquer rastro de humanidade, de terrenalidade, para colocar em seu lugar uma religião e um modo de vida que arrasta para trás a humanidade, que transforma em letra morta tudo o que os homens já viveram, construíram e sofreram para avançar até aqui e sobreviver até aqui; que querem destruir as descobertas científicas, a tecnologia, a arte, séculos de civilização que deveriam ser esquecidos para voltarmos à estaca zero.


Dos mitos à razão; da razão aos mitos

Não, as obras de arte não têm tanto poder, por isso, sua destruição também não tem o poder de destruir a história, de jogar a humanidade inteira para trás. É preciso mais do que a arte para tamanha ousadia. 
A fetichização das obras artísticas é fruto do capitalismo, de uma mentalidade econômica pura e simples, que sacraliza a arte, que lhe atribui um caráter sagrado e transcendental, acima dos homens, o que, obviamente, eleva seu valor de uso (ter um quadro de Van Gogh por exemplo faz  crescer em importância a figura de  seu proprietário) e, com isso, seu valor de troca no mercado da arte. Não existe maior destruição da arte do que a que foi e continua sendo perpetrada pela sociedade burguesa, transformando-a em pura mercadoria.

Toda a história da arte demonstra que em sua origem, a arte foi magia, foi um auxílio mágico para os homens em sua luta por dominar a natureza e um mundo ainda inexplorado. Daí a criação de mitos e todo tipo de idéias baseadas em superstições e suposições, em sensações, misticismos que dominavam a arte, sobretudo a arte religiosa. Mas esse papel mágico da arte foi aos poucos cedendo lugar a outro papel: o de clarificar as relações sociais, ajudar o homem a mover-se em um mundo mais conhecido e mais racional. Uma sociedade mais complexa, com suas inúmeras contradições, já não podia ser expressa à maneira dos mitos, já não cabia em formas artísticas rígidas e mágicas dos tempos primordiais.

Algumas vezes predomina o elemento mágico na obra artística, o sonho, a intuição, a percepção; outras vezes predomina a racionalidade, o esclarecimento, a razão. De uma forma ou de outra, a arte nunca é um reflexo absoluto e puro do real; nunca se serve apenas da razão e do esclarecimento, mas também do sentimento, do irracional e das paixões humanas. O verdadeiro artista não lida apenas com contrastes absolutos mas  sim com forças contraditórias e em permanente transformação.


A arte só estará a salvo com o fim do capitalismo e do imperialismo

Muito provavelmente as obras de arte hoje destruídas pelos jihadistas no Iraque e na Síria continham muitos elementos mágicos, que refletiam uma época histórica em que os homens apenas conseguiam arrancar suas mãos para fora da terra. É muito provável também que os jihadistas que as destruíram não soubessem disso ou não conhecessem a fundo o significado de seu gesto. Era uma manifestação de ódio às imagens, ao acúmulo de cultura que a humanidade fez até aqui que, segundo sua concepção de mundo, não está de acordo com a sharia. Era também uma manifestação de seu poder de ocupar cada vez mais território e ampliar o Estado Islâmico.

Mas esses elementos mágicos representam justamente o retorno a um passado que a humanidade está tentando, a todo custo, deixar para trás, e que o Estado Islâmico trata de fazer voltar; com suas marretas, tenta deter a roda da história, para que voltemos a suportar as penúrias, as misérias, a animalização do trato dos homens para com as mulheres, a idéia de que o homem é nada perante deus e a idéia absoluta. A batalha que a humanidade trava agora contra o capitalismo e o imperialismo, consciente ou inconscientemente, é também uma batalha contra o atraso, contra a volta a um passado de penúria e irracionalismo.

Hoje essa luta exige, sobretudo por parte do proletariado, o máximo de razão possível, o mínimo de sharia possível, a maior igualdade entre homens e mulheres proletários para que seja vitoriosa. Os povos do Oriente Médio igualmente precisam da máxima razão possível para se unir contra o imperialismo, as guerras que os estão destruindo, as idéias míticas e os elementos mágicos propagados pelo autoritarismo e fundamentalismo, para que possam vencer. Enquanto isso não ocorrer, a arte estará em perigo, sobretudo a arte verdadeira. Nada poderá salvá-la enquanto os homens não estiverem salvos do autoritarismo, da ganância, da exploração. Nesse sentido, o apelo da Unesco é  patético, porque só com o fim do imperialismo e de todos os seus organismos, incluindo a própria Unesco, o proletariado mundial e as massas espoliadas do Oriente Médio, poderão livrar as obras artísticas das marretas destruidoras, para que a arte reencontre seu caminho como ponte entre o indivíduo e o todo, como reflexo da infinita capacidade do homem de tornar social a sua individualidade e coletiva a existência humana.

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Artigo originalmente publicado no Site da Liga Internacional dos Traabalhores, a LIT. Para acessá-lo, clique aqui.

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